“O velho e o
novo”
Um clássico incontestável que desperta admiração até
hoje.
C&N
A
propósito dos 50 anos da
única Palma
de
Ouro
conquistada em Cannes
pelo cinema brasileiro, publico abaixo
o
texto que fiz para o DVD do filme na
Programadora Brasil. Não
comemorar o
cinquentenário
dessa vitória foi a
maior lacuna da
homenagem prestada ao Brasil em Cannes
este ano. Não
comemorá-lo
aqui, com uma
bela e
recheada edição
em
DVD e
Blu-ray, é
prova da
inconsistência da
indústria
cultural
brasileira e dos
preconceitos que
ainda
estigmatizam o
filme.
O
segundo filme dirigido por
Anselmo Duarte, galã da Vera Cruz e da
Atlântida, é um caso único nas artes brasileiras. Constitui um
dos
filmes-ponte entre a tentativa de se fazer um cinema industrial, vigente ao
longo dos anos 1950, e a proposta revolucionária do então nascente
Cinema Novo.
“O Pagador de
Promessas” foi talvez o ápice do ‘velho’
cinema brasileiro, neorrealista,
convencional, baseado em regras de verossimilhança e
continuidade.
A luz do fotógrafo Chick Fowle ainda evocava a estética rebuscada da
Vera Cruz, assim como a trilha sonora de Gabriel
Migliori.
No entanto, o filme já continha elementos que iam explodir no Cinema
Novo: atores como Othon Bastos e Geraldo Del Rey
(presentes logo depois em “Deus e o Diabo na Terra do
Sol”) e principalmente o desejo de
refletir sobre a realidade brasileira do momento.
Havia certo idealismo na forma como Dias Gomes, autor da peça
original,
dividiu o quadro social entre o velho autêntico e o novo corrompido.
Zé do
Burro é ‘atrasado’, ingênuo, reflete o velho Brasil
sincretista e
aferrado à noção de compromisso. Não é à toa que o filme foi exibido na
Europa com o título La
Parole
Doné (a palavra empenhada). Quando, diante do
catolicismo dominante, é instado a renegar sua fé sincrética em Iansã
e
Santa Bárbara, Zé do Burro se aproxima de personagens
como
Joana D’Arc, Galileu e Giordano Bruno,
vítimas da Inquisição.
Do
lado dele ficam os
umbandistas e capoeiristas (a raiz africana),
assim
como o poeta popular. Do outro lado, o mundo do consumo, do comércio e da
propaganda: o repórter sensacionalista, os comerciantes oportunistas, o
cafetão
inescrupuloso. Além, é claro, da igreja dogmática e intolerante, que não
admite
o sincretismo - ecos de uma velha aliança com o poder dos senhores
brancos.
Afora
essas figuras emblemáticas, o povo é figuração, serve para encher o quadro e
tornar o filme mais plausível. Era ainda a representação popular um tanto
folclorista da Vera Cruz. Anselmo Duarte se propôs
fazer um
filme para disputar festivais internacionais. Daí certa ênfase nas cenas de
candomblé, no bloco de carnaval, na roda de capoeira, na lavagem da
escadaria -
tudo apresentado como espetáculo, em vez de parte orgânica da
narrativa.
A
estratégia do diretor e do
produtor
Oswaldo
Massaini deu absolutamente certo. Concorrendo com Fellini,
Visconti, Antonioni, Buñuel, De Sica e
Bresson, “La Parole
Doné” ganhou a
Palma de Ouro de Cannes, o maior prêmio
internacional já recebido por um filme brasileiro até
hoje, além de mais quatro festivais no exterior.
A
Palma de Ouro
gerou uma das histórias mais
lamentáveis dos bastidores do cinema brasileiro. Grande
parte do Cinema Novo renegou o filme. Glauber Rocha,
que
antes o havia elogiado, acusou Duarte de filmar uma realidade de
esquerda
com ideologia de direita. O elogio da simplicidade do homem comum foi visto
como
uma celebração do atraso, do conformismo e da derrota, em lugar do espírito
revolucionário. Como resultado dessa rejeição, o filme caiu em relativo
esquecimento.
Não merecia. É
um
clássico incontestável e desperta admiração até hoje. A sequência em que
Zé do Burro ‘namora’ com a imagem de Santa Bárbara
poderia
ter sido assinada por Buñuel. O uso dramático da escadaria da igreja
como
símbolo de ascese espiritual e o esforço do personagem para entrar no templo
usando a cruz como aríete são, com certeza, momentos culminantes do nosso
cinema.
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