Jesus Cristo – um ensaio
Fronteira entre o cinema e
a
fé religiosa.
C&N
Sagrado
Segredo
transita pela via perigosa do filme místico, pavimentada atualmente
por
produções oportunistas e visões caricatas da espiritualidade. André Luiz
de
Oliveira conta a história de um menino que se impressiona
vivamente
com as imagens de uma Via Sacra numa igreja e, ao crescer,
encontra-se como cineasta envolvido nas filmagens de um
espetáculo
da Paixão de Cristo.
O
argumento reflete buscas alegadas
pelo
próprio André Luiz, ele que viaja frequentemente à Índia, é exímio
tocador de sítara e tem na contracultura uma espécie de
religião. É possível, assim, ver Sagrado
Segredo
como um filme de ascese espiritual, enlevado por uma
trilha
sonora que sacraliza, quase permanentemente, tudo o que passa pela tela. É
possível ver o filme também como uma proposta de reformulação de
crenças religiosas cristalizadas, já que seu esteio teórico é fornecido
pelo
pensador da física quântica Amit Goswami, um indiano disposto a
reinterpretar o deus dos cristãos.
Seguindo a
trilha
semeada por Goswami em depoimentos ao longo do filme, podemos até
mesmo
ler Sagrado
Segredo
como uma negação da existência de Deus, tal como o
imagina a maioria dos crentes. Ora, se Deus não está separado de nós, e se
manifesta mesmo através de nós, tanto se pode dizer que Ele existe em
nós
como que não existe, mas somente nós existimos.
Esse
caminho é bem mais cômodo para um
ateu materialista como eu, que vê a religião como um feixe de narrativas
míticas
e de representações do imaginário. O filme de André Luiz permite,
então,
que também eu encontre um acesso a seus “mistérios”, entendidos como
os
mistérios da criação.
Em sua estrutura,
Sagrado
Segredo
tem certo parentesco com Ricardo
III – Um Ensaio, dirigido por Al Pacino em 1996.
Temos
uma encenação real da Paixão de Cristo – a de Planaltina (DF),
realizada anualmente desde 1973 e que reúne cerca de 200 mil espectadores.
Uma
equipe ficcional de cinema se organiza para documentar o espetáculo e
discute questões na fronteira entre o cinema e a fé religiosa. Vemos também
o
resultado dessa documentação e ainda os depoimentos de Amit
Goswami. André Luiz transita com liberdade entre essas diversas
camadas, embora se mantendo sempre conectado ao seu objetivo
principal: uma busca de transcendência através do
cinema.
Não é muito
diferente,
afinal, do que víamos no seu longa anterior, o memorável Louco
por Cinema, que ganhou o Festival de Brasília
em
1995. Ali, um interno de manicômio foge para concluir as
filmagens de uma produção marginal inacabada. A perseverança
levada às raias da insanidade é a mesma que faz o diretor de cinema em
Sagrado
Segredo
se desgarrar de sua equipe na apoteose que coincide com a
crucificação de Cristo no espetáculo. O cinema e a representação se
impõem como necessidades vitais para além de qualquer
regra.
O ícone
cristão
por
excelência, a cruz, já estava presente na primeira e na última imagem do
longa
de estreia de André Luiz, o underground
Meteorango
Kid, Herói Intergalático
(1969). A condição de crucificado era parte da delirante
trajetória de Lula Bom Cabelo, o protagonista. A imagem
religiosa, tomada ali num sentido de contestação radical, aqui é
recuperada como símbolo de um elogio do encontro e da
autodescoberta.
Cada um vê esse filme como quer, mas
é
certo que seu mote central é o da fé religiosa se confundindo
com
a fé cênica. Crer no personagem, afinal, é do que tratam tanto a
religião
como o teatro (o mais clássico, pelo menos). Os atores do Grupo
Via Sacra, todos com vida espiritual ativa, dão “testemunhos”
em
vez de depoimentos (“A fé está em Jesus para o teatro acontecer”).
Por
outro lado, as “visões” do personagem do diretor de cinema são
como efeitos psicodélicos sobre a cena natural, atalhos para um
conhecimento superior assumidos como milagres digitais produzidos na
imagem. O sermão do Horto das Oliveiras é ouvido com uma empostação
de
dublagem de estúdio que tira as palavras de Cristo da sonoridade
realista
e as coloca no registro do espetáculo. Ao fim e ao cabo, tudo é
encenação
em Sagrado
Segredo.
O filme
tematiza
também esse encontro frutuoso entre cinema e teatro que está
ocorrendo na cena contemporânea brasileira. Não vou me repetir sobre um
assunto
que tenho abordado frequentemente por aqui, mas é preciso dizer que
Sagrado
Segredo
leva esse diálogo a uma dimensão alegórica extravagante,
condizente
com o ímpeto de seu diretor.
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