Julia Murat e o neoarcaísmo.
“Histórias…”
não supera a
armadilha de uma dramaturgia ‘de cima para baixo’.
C&N
Repetidamente, em
imagem
recorrente no filme, Madalena caminha em direção à câmera. O
passo
da velha senhora é lento, e a câmera espera, pacientemente, que ela chegue
do
plano geral até o close. Às vezes é ela quem traz a luz da cena na
mão
– um lampião a querosene que pouco a pouco vai iluminando o ambiente e
clareando
a tela à medida que ela se aproxima. Essas imagens de Histórias que
Só
Existem Quando Lembradas exprimem toda uma atitude da realizadora
Julia Murat diante de seus personagens: manter o olhar fixo para
eles,
assim como quem evita tremer para não estragar a foto, e esperar pelo que
seria
o ritmo natural deles. Não fazer nada que possa soar como uma intervenção
exógena na cadência compassada da vida daquelas criaturas.
Histórias…, premiado em
vários festivais no exterior e recebido com louvor por muitos críticos
brasileiros, insere-se numa linhagem contemporânea que já está a merecer a
atenção dos estudiosos. Trata-se do que vou chamar aqui de neoarcaísmo. São
realizadores jovens, ou pelo menos não veteranos, que se debruçam sobre
personagens idosos vivendo hábitos antigos em lugares perdidos no tempo.
Assim é
Girimunho, de Helvécio Marins Jr. e Clarissa
Campolina, com suas senhoras de São Romão, no interior de
Minas. Também em Minas foi feito o documentário Terra
Deu,
Terra Come, de Rodrigo Siqueira, centrado no mestre
funerário
Pedro de Alexia, de 81 anos. Petrus Cariry não foge
muito
a esse modelo com seu Mãe e Filha, rodado na fantasmal
Cococi, sertão do Ceará. Nem mesmo o inédito
Sudoeste, de Eduardo Nunes, deixa de dialogar com
essa
busca de transcendência nos ermos brasileiros, no caso a Região
dos
Lagos fluminense.
Une esses filmes,
além das locações distanciadas no espaço e no tempo, a presença da morte
como
coisa muito viva dentro das tramas. É o que acontece com os cônjuges
falecidos
mas muito lembrados em Girimunho e
Histórias…; o bebê em Mãe e Filha; o
defunto misterioso em Terra Deu, Terra Come; a filha
seguindo os
passos da mãe morta em Sudoeste. A ligação entre vivos e
mortos
pode ser lúdica, mística ou mágica, mas nunca é menos que determinante no
que
vemos acontecer na tela.
A
cidadezinha do Vale do Paraíba
onde se passa Histórias que Só Existem Quando Lembradas
podia
ter saído de um romance de García Marquez ou de uma novela de Dias
Gomes. Os moradores há tempos pararam de morrer e o cemitério está
trancado
a cadeado. Madalena e seu parceiro de comércio levam uma
rotina
repetitiva, marcada por hábitos entranhados, ranzinzices e os sinos da
igrejinha
local. Temos aí um exemplo acabado do neoarcaísmo em ação. O afastamento da
realidade urbana tem um sentido muito distinto da época em que o Cinema
Novo deslocava-se para o mundo rural para melhor diagnosticar as
estruturas
arcaicas do país. Agora o movimento rumo ao interior tem a marca de um certo
fascínio pelo arcaico, um gosto pela defasagem. É como se no mundo dos
velhos e
das coisas antigas estivesse o frescor de uma nova poética. Indo até lá, é
possível distanciar-se tanto da veloz banalidade do cinema de ficção
dominante
quanto do cansaço da expressão puramente documental.
Mas Histórias… vai adicionar
um
ingrediente especial a essa receita. A chegada de uma jovem fotógrafa vai
não só
mexer com a pasmaceira da vila, mas também estabelecer uma perspectiva
complicadora para o neoarcaísmo. Rita é um claro alterego
senão de
Julia Murat, mas de artistas urbanos que se interessam por universos
remotos como aquele. Ela usa uma câmera pinhole, equipamento
fotográfico sem lente cujas primeiras versões eram conhecidas desde os
tempos de
Aristóteles. Ou seja, o neoarcaísmo tem seu comentário tecnológico
com a
volta à moda de um dispositivo rudimentar.
Rita não se intimida em pedir que os velhos da cidade posem para sua
câmera.
As fotos tampouco são realistas, mas recriações artísticas, meio fantasmais,
do
cenário que se oferece ao seu olhar. Que Rita não seja apenas
uma
exploradora do seu passeio pelo arcaico, mas acabe se deixando absorver por
aquele mundo, é uma das muitas fragilidades bem-intencionadas que vejo no
filme.
Ao contrário de Girimunho, seu parente talvez mais próximo,
Histórias… não supera a armadilha de uma dramaturgia ‘de
cima
para baixo’. Os diálogos muito formatados, a caracterização limitada da
forasteira e a reverência do olhar da câmera sobre pessoas e coisas reduzem
bastante o potencial de encantamento e mistério do argumento.
De
qualquer forma, o filme ajuda a
enxergar
melhor uma tendência relevante do cinema brasileiro atual e fornece
elementos
para se observar suas possíveis contradições.
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