“Sunday In The
Park
With George”
‘Em uma ilha no rio num
domingo
qualquer’.
C&N
Como será que surgem as idéias? De onde vem a inspiração? Lendo
um
livro? Observando o mundo a sua volta? Após 99% de transpiração? Da cabeça?
Do
coração? Depois de um brainstorm?
No
meio de um sonho? Ou realmente Calíope, Euterpe, Terpsícore e as demais
Musas
descem até nós, pobres mortais? No caso de James Lapine (libreto e direção) e
Stephen Sondheim (música e letras)
provavelmente veio após uma visita ao Art Institute of Chicago... Ou
folheando Os Gênios da Pintura,
quando se depararam com a obra prima do pontilhismo francês, o quadro Un Dimanche Après-midi à l'Île de La
Grande
Jatte (Uma Tarde de
Domingo na Ilha de La Grand Jatte, 1884 - clique
aqui),
do pintor Georges Seurat.
Sunday in
the
Park With George marcou a primeira
parceria da
dupla, após seis produções em seguida de Sondheim com o diretor Harold Prince, encerrada após o fracasso e a
recepção
fulminante da crítica para Merrily We Roll Along, em 1981
(o
show fechou após 16 apresentações e Sondheim anunciou que iria
abandonar o
teatro musical para escrever livros de mistério!). Esta obra, intensamente
pessoal e especialmente desafiadora e difícil, se deu quando Lapine, que nunca havia trabalhado
com
teatro musical antes, percebeu que faltava uma figura principal na tela: o
próprio artista. Assim, o musical ficcionaliza, num grande exercício de
criatividade, a vida de Seurat,
permitindo a seus autores demonstrar seus sentimentos com relação à arte e
ao
processo de criação artística. Para tanto Sondheim & Lapine concentram-se na narrativa
da
criação de um quadro, e a vida de seu autor. Este show demonstra a
preocupação
de Sondheim em pesquisar os
temas
mais variados, e absolutamente inesperados do teatro musical; pesquisa que
continuaria com seus trabalhos seguintes, como Into
the Woods e Assassins.
Georges
Seurat foi um pintor impressionista
francês, um artista obcecado pela técnica, que há mais de 120
anos
(morreu em 1891) disse que queria fazer alguma coisa nova, um tipo de
pintura que fosse uma criação própria, sem nenhum tipo de
influência. Acabou surpreendendo o mundo com sua teoria do pontilhismo, onde a justaposição
de
pontos de várias cores cria uma nova cor.
O
show estreou em maio de 1984
e, no
primeiro ato, que tem lugar na ilha, exatos cem anos antes, em
1884, George (Mandy
Patinkin) está ocupadíssimo, pintando os parisienses desfrutando de um
dia de folga em um parque às margens do Sena. Somos
apresentados
aos personagens e seus relacionamentos uns com os outros, em
particular o relacionamento de George com Dot (Bernadette
Peters),
sua modelo e amante. Entretanto as preocupações do artista com
seu
trabalho e a luta com seus demônios, faz com que o romance deles esteja
fadado,
e a modelo, que está grávida, aceita a oferta de casamento de um padeiro. No
finale do primeiro
ato,
temos um dos momentos mágicos e mais antológicos dos palcos da
Broadway: o instante em que Seurat dá ordem ao caos, terminando
sua
obra-prima, congelando os personagens num tableau vivant, exatamente como
na
pintura original (clique “Sunday”). É um dos momentos mais
emocionantes do
cânone de Sondheim. O segundo
ato dá um salto para o presente, em Nova York, onde o bisneto
do
pintor, um escultor multimídia também chamado George, quer atingir a sua
própria realização artística como o bisavô. Ele está num
impasse
criativo após completar seu sétimo “Chromolume”. Logo sua
confiança
é restaurada. Contudo, quando ele visita La Grand Jatte é instado pelo
fantasma
da sua bisavó a parar de se preocupar sobre o que os outros pensam e
continuar
seguindo em frente (clique “Move On” - conforme exibida no Tony 2008).
Na
vida real nenhum dos filhos de Seurat sobreviveu à infância e ele
não
teve netos. Sua esposa de direito foi Madeleine Knobloch, que deu a luz
aos
seus dois filhos, o segundo após a morte dele. Ao contrário de Dot na história, ela viveu
com
Seurat até a sua morte, aos
32
anos, e nunca imigrou para a América, morrendo de cirrose hepática aos
35
anos.
Sunday in
the
Park With George, que foi primeiro
encenado
como workshop em 1983, acabou
sendo
um típico caso de desentendimento entre os críticos. Dificilmente um
musical despertou tanta controvérsia, como o que aconteceu com SITPWG (como o título é
abreviado
pelos fãs, que gostam de se referir a outros shows de títulos longos como HTSIBWRT - How to Succeed in Business...
e AFTHOTWTTF - A Funny Thing
Happened...). Apesar dos muitos elogios para Mandy e Bernadette, ele foi considerado um
musical menor, com 604 apresentações. Mesmo assim acabou ganhando o Prêmio Pulitzer de 1985 para drama;
nomeado a 10 Prêmios Tony
(vencendo
nas categorias de iluminação e cenografia), e conquistando o Drama Desk Award e o New York Drama Critic’s Circle
Award de
Melhor Musical. Em 1994, o elenco original voltaria à
Broadway para um concerto comemorativo dos 10 anos. A
remontagem londrina, de 2006, usando recursos tecnológicos
(ver “Move On” acima) e projeções
em
telões como se fossem telas em branco, acabou estreando na Broadway
em
2008, sem chegar a 150 apresentações. Trazendo no elenco Daniel Evans (George)
e
Jenna Russell
(Dot)
conquistou o Prêmio Laurence
Olivier
de melhor musical, atores, cenário e iluminação.
Em
outubro de 1985 o musical foi
gravado em vídeo pela Showtime
com
praticamente todo o elenco original da Broadway. Após ser transmitido pela
TV
americana foi lançado em VHS, laserdisc e finalmente em
DVD
que aqui no Brasil saiu pela Top
Tape, legendado em português, aliás, com muitos erros de
tradução. Em
compensação podemos conferir a incrível beleza visual do espetáculo.
Duas gravações
do
musical foram feitas e estão disponíveis em CD. A primeira e
definitiva é
sem dúvida a do Elenco Original da
Broadway, de 1984 (RCA), um
dos
trabalhos mais inesquecíveis e distintos de Sondheim, que em sua essência é uma
meditação sobre a natureza da arte. Apesar do show ser criticado pela
disparidade entre seus dois atos, cada um dá coesão ao outro,
nos
trazendo um score colorido
e
com profundidade. Sondheim
reflete o
estilo de pintura único de Seurat
através do uso de notas em staccato,
fazendo com as tonalidades musicais aquilo que o pintor fez ao trabalhar os
pigmentos. Canções como ‘Color and
Light’ e ‘Finishing the
Hat’ (aqui com Daniel Evans) são particularmente notáveis em som e textura. “(to) Finish the Hat” virou
uma
expressão entre os artistas do teatro musical significando algo como “fazer bem o trabalho”. O
segundo
ato começa com a divertida ‘It’s Hot Up
Here’, cantada pelos personagens na
pintura,
seguida pela brilhante cena musical
‘Putting It
Together’ (sobre as tentativas de George em
levantar dinheiro - aqui cantado por Barbra Streisand em versão
especialmente adaptada por Sondheim
para ela e que mais tarde daria nome a outro show dele), ‘Children and
Art’ (aqui na interpretação de Marilyn Michaels – sobre o que
deixamos
após a nossa morte), e ‘Lesson
#8’ (sobre a constante mutação da natureza da arte e da vida). Mandy Patinkin e Bernadette Peters nos dão talvez
os
melhores trabalhos de suas carreiras, ficando associados definitivamente a
Sondheim e gravando, mais tarde, songbooks do compositor.
A
outra gravação é a 2006 London Revival Cast Recording
(PS
Classics), onde temos uma rara regravação deste que é um dos musicais mais
bonitos na mesma medida que também é um dos mais incompreendidos. Aqui o
desafio
é bem cumprido num CD duplo e mais completo, onde Daniel Evans, Jenna Russell (aqui cantando 'Sunday in the Park with
George') e o resto do elenco capturam a
beleza,
a complexidade e o humor da música sondheimiana. Algo ao mesmo tempo
interessante e dispersivo é a utilização de sotaques. Embora o primeiro ato
tome
lugar na França, ninguém usa sotaque francês. Por ser esta uma produção
inglesa,
os atores utilizam sotaque britânico para o primeiro ato que é trocado por
sotaque americano no segundo ato (que se passa nos EUA). O uso de sotaques
também serve para indicar a classe social dos personagens. Enquanto George usa tons mais
decididos,
Dot fala com um leve
sotaque
cockney, ajudando a
dimensionar de uma nova forma a relação entre eles. A orquestra, apesar de
reduzida, tem um grande som com uma musicalidade inigualável com ritmos
vibrantes, os stacatti e
pontuados
sensacionais e os pianos e fortes arrebatadores. Como bônus temos a faixa
com a
versão longa de "The One on the
Left", cantada pelos dois
soldados e pelas duas Celestes
(Christopher Colley, Sarah French Ellis e Kaisa Hammarlund). Traz ainda um
belo
encarte contendo a sinopse, o libtreto integral e comentários.
SITPWG é um
dos
scores mais acessíveis de Sondheim e uma de suas melhores
realizações, embora leve tempo para crescer dentro de você, e sendo preciso
algumas audições para sua total apreciação.
No
começo deste artigo perguntamos: “Como será que surgem as idéias? De
onde
vem a inspiração?” No final de Sunday in the Park with George
talvez tenhamos uma pista, quando George termina de ler o
diário
de seu bisavô onde está escrito: “Branco. Uma tela vazia. E são tantas
as
possibilidades…”
Cláudio Erlichman
é
publicitário
e produtor
cultural.
Nenhum comentário:
Postar um comentário