Observações à beira da
estrada
Descontadas
as distâncias entre livro e filme, “Na
Estrada”
é
um bom filme.
C&N
Um dos
filmes
mais
esperados dos últimos tempos, Na
Estrada
chega às telas brasileiras sob o peso de uma imensa
expectativa e de cobranças amplificadas pelo fato de ser dirigido por um
cineasta brasileiro. Tenho minhas próprias observações sobre esse processo
de
dar imagem e movimento às andanças dos velhos beats:
1.
Nem tudo de insuficiente em Na
Estrada pode
ser debitado à adaptação escrita por José Rivera e dirigida por Walter
Salles.
O caráter
episódico,
por exemplo, é fundamental para a experiência vivida por Kerouac e
seus
companheiros. Eles obedeciam ao imperativo de mover-se, “única função
nobre
de nossa época”, qual seja o fim da década de 1940. No livro como no
filme, os personagens cruzam o país diversas vezes de Leste a Oeste e
vice-versa. Sem um mapa, é praticamente impossível acompanhar a
geografia
desses deslocamentos. Leitores e espectadores farão melhor se desativarem o
GPS
e curtirem a viagem como coisa sem rumo definido. Em todo caso, é bom saber
que
Kerouac via “algo cinzento e sagrado no Leste, enquanto a
Califórnia é
clara como roupa no varal e tem a mente vazia”. E se Denver é
citada
25 vezes no filme, no livro isso se conta às muitas dezenas, tal foi a
obsessão
que o autor desenvolveu pela capital do Colorado.
Um certo
ar de ingenuidade, apesar
das
drogas e da transgressão, chega até a tela, e isso tampouco é problema do
filme.
Não há como ler hoje On
the Road
sem provar do envelhecimento de seu ideário. Os
beats
foram fundamentais para o surgimento da contracultura, do movimento
hippie, etc, mas junto com a influência veio também a superação.
Muito do
estilo mochileiro do texto, com suas inflexões que ecoavam o ritmo do
jazz e do bebop,
soa hoje bastante infantilizado para aqueles galalaus cujas
delinquências
pouco iam além de tirar a roupa e roubar gasolina e junk
food pelas estradas da América.
2.
Em outros aspectos a adaptação pode, sim, ser
responsabilizada.
O mais
grave deles, a meu ver, é não
conseguir fazer de Dean Moriarty o personagem supostamente
fascinante que Kerouac descreve. Discordo da maioria dos colegas
críticos
que exaltam a atuação de Garrett Hedlund nesse papel. Em nenhum
momento
ele atinge o grau de loucura do Dean original, nem sugere a
criatura maior-que-a-vida descrita por Kerouac. A exuberância
de
Dean estava não apenas nas ações, mas no uso delirante e
poético
das palavras. O roteiro do filme não abre espaço para isso se
manifestar.
Concordo, porém, com quem acha o
filme
bem comportado demais. E isso não diz respeito tanto às ações da
turma.
Carlo/Ginsberg, por exemplo, está até mais explícito na sua homossexualidade
que
no livro, servindo para sublinhar a homoafetividade latente entre os
personagens masculinos. A cena da masturbação dupla no carro foi uma
criação do filme, que investe razoavelmente nas fichas da
sensualidade. O déficit de indisciplina, a meu ver, não está aí, mas
na
caracterização do que existia de underground
na aventura dos caras. A fome, a falta de higiene e as bordas da
mendicância,
sempre presentes nas páginas, têm presença muito breve na tela.
Um dos princípios
beats mais importantes era a
rejeição da “tristeza branca”. Daí que Kerouac frequentemente
se
identificasse com negros, mexicanos, índios, etc, ou aspirasse a ser como um
deles. No filme, vemos rapazes brancos e bem apessoados que sequer
tangenciam essa aspiração. Nesse sentido, a entrada no México, que no
livro é uma apoteose (“a terra mágica que ficava no final
da
estrada”), chega ao cinema bastante esvaziada, como se
fosse
um epílogo já meio cansado, cheio de cactos, mas desprovido do sentido de
“iluminação” psicodélica que o escritor lhe
atribuiu.
Pode-se argumentar também que a
estrada mereceria figurar com mais densidade no filme. Os lugares são tão
personagens quanto as pessoas, daí que uma visão mais detida das paisagens e
de
uma fenomenologia da estrada faria jus a sua importância no
original. A estrada, em Salles, aparece mais como rápidos
intervalos entre as cenas do que como matéria mesmo da história.
3.
Descontadas as distâncias entre livro e filme, assim como entre os anos 1940
e a
atualidade, é preciso dizer que, ainda assim, Na
Estrada é
um bom filme.
A condução de elenco,
decupagem e
ritmo interno das cenas é impecável por parte de Walter
Salles. A
música desempenha a função que era de se esperar num filme sobre os
beats,
marcando o tom desde antes mesmo de aparecer a primeira imagem,
estendendo-se na
cadência de muitas sequências e na trilha atmosférica de Gustavo
Santaolalla.
Uma
belíssima e cuidadosa produção
garante
a qualidade da reconstituição de época, da escolha de locações e a criação
de
imagens muito sugestivas ao longo de todo o filme. Nenhuma dessas imagens,
talvez, seja tão simples e poderosa quanto as que mostram uma estrada
vazia seguida de uma página em branco na máquina de Sal
Paradise. Esse momento feliz de síntese remete não apenas à essência
da
atitude literária de Kerouac, mas também ao desafio supremo que foi
levá-la ao cinema.
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