13 de agosto de 2012

Jesus Cristo – um ensaio


Jesus Cristo – um ensaio
Fronteira entre o cinema e a fé religiosa.
C&N
Sagrado Segredo transita pela via perigosa do filme místico, pavimentada atualmente por produções oportunistas e visões caricatas da espiritualidade. André Luiz de Oliveira conta a história de um menino que se impressiona vivamente com as imagens de uma Via Sacra numa igreja e, ao crescer, encontra-se como cineasta envolvido nas filmagens de um espetáculo da Paixão de Cristo.
O argumento reflete buscas alegadas pelo próprio André Luiz, ele que viaja frequentemente à Índia, é exímio tocador de sítara e tem na contracultura uma espécie de religião. É possível, assim, ver Sagrado Segredo como um filme de ascese espiritual, enlevado por uma trilha sonora que sacraliza, quase permanentemente, tudo o que passa pela tela. É possível ver o filme também como uma proposta de reformulação de crenças religiosas cristalizadas, já que seu esteio teórico é fornecido pelo pensador da física quântica Amit Goswami, um indiano disposto a reinterpretar o deus dos cristãos.
Seguindo a trilha semeada por Goswami em depoimentos ao longo do filme, podemos até mesmo ler Sagrado Segredo como uma negação da existência de Deus, tal como o imagina a maioria dos crentes. Ora, se Deus não está separado de nós, e se manifesta mesmo através de nós, tanto se pode dizer que Ele existe em nós como que não existe, mas somente nós existimos.
Esse caminho é bem mais cômodo para um ateu materialista como eu, que vê a religião como um feixe de narrativas míticas e de representações do imaginário. O filme de André Luiz permite, então, que também eu encontre um acesso a seus “mistérios”, entendidos como os mistérios da criação.
Em sua estrutura, Sagrado Segredo tem certo parentesco com Ricardo III – Um Ensaio, dirigido por Al Pacino em 1996. Temos uma encenação real da Paixão de Cristo – a de Planaltina (DF), realizada anualmente desde 1973 e que reúne cerca de 200 mil espectadores. Uma equipe ficcional de cinema se organiza para documentar o espetáculo e discute questões na fronteira entre o cinema e a fé religiosa. Vemos também o resultado dessa documentação e ainda os depoimentos de Amit Goswami. André Luiz transita com liberdade entre essas diversas camadas, embora se mantendo sempre conectado ao seu objetivo principal: uma busca de transcendência através do cinema.
Não é muito diferente, afinal, do que víamos no seu longa anterior, o memorável Louco por Cinema, que ganhou o Festival de Brasília em 1995. Ali, um interno de manicômio foge para concluir as filmagens de uma produção marginal inacabada. A perseverança levada às raias da insanidade é a mesma que faz o diretor de cinema em Sagrado Segredo se desgarrar de sua equipe na apoteose que coincide com a crucificação de Cristo no espetáculo. O cinema e a representação se impõem como necessidades vitais para além de qualquer regra.
O ícone cristão por excelência, a cruz, já estava presente na primeira e na última imagem do longa de estreia de André Luiz, o underground Meteorango Kid, Herói Intergalático (1969). A condição de crucificado era parte da delirante trajetória de Lula Bom Cabelo, o protagonista. A imagem religiosa, tomada ali num sentido de contestação radical, aqui é recuperada como símbolo de um elogio do encontro e da autodescoberta.
Cada um vê esse filme como quer, mas é certo que seu mote central é o da fé religiosa se confundindo com a fé cênica. Crer no personagem, afinal, é do que tratam tanto a religião como o teatro (o mais clássico, pelo menos). Os atores do Grupo Via Sacra, todos com vida espiritual ativa, dão “testemunhos” em vez de depoimentos (“A fé está em Jesus para o teatro acontecer”). Por outro lado, as “visões” do personagem do diretor de cinema são como efeitos psicodélicos sobre a cena natural, atalhos para um conhecimento superior assumidos como milagres digitais produzidos na imagem. O sermão do Horto das Oliveiras é ouvido com uma empostação de dublagem de estúdio que tira as palavras de Cristo da sonoridade realista e as coloca no registro do espetáculo. Ao fim e ao cabo, tudo é encenação em Sagrado Segredo.
O filme tematiza também esse encontro frutuoso entre cinema e teatro que está ocorrendo na cena contemporânea brasileira. Não vou me repetir sobre um assunto que tenho abordado frequentemente por aqui, mas é preciso dizer que Sagrado Segredo leva esse diálogo a uma dimensão alegórica extravagante, condizente com o ímpeto de seu diretor.

Nenhum comentário:

Postar um comentário