19 de abril de 2012

‘O salto estético de Evaldo Mocarzel’


‘O salto estético de Evaldo Mocarzel’
Os dois títulos lançados mereceram prêmios.
C&N
Dois documentários de Evaldo Mocarzel entraram em cartaz na semana passada: o longa À Margem do Lixo em cinemas de seis estados; e o média Quebradeiras em 1109 cineclubes de todo o Brasil, que receberam kits da Raiz Distribuidora com os dois filmes em DVD. Se contarmos sua co-direção em “Raul, o Início, o Meio e o Fim”, serão três filmes dele em exibição simultânea pelo país. Evaldo é um dos documentaristas mais ativos nos últimos dez anos. Seus filmes chegam relativamente pouco aos cinemas e praticamente não chegam às locadoras, mas circulam muito na TV, em festivais, escolas, comunidades, etc.
Os dois títulos lançados agora, quatro anos depois de realizados, já mereceram prêmios: À Margem do Lixo ganhou melhor filme pelo júri popular, melhor fotografia e Prêmio Especial do Júri no Festival de Brasília de 2008. Quebradeiras recebeu o prêmio de melhor documentário no Festival de Toulouse, na França, e prêmios de direção, fotografia e som no Festival de Brasília de 2009. Mais importante ainda, esses filmes demonstram a passagem de Mocarzel da fase de informação bruta para um momento de maior busca estética. Passagem também da entrevista para a observação.
À Margem do Lixo é o terceiro tomo de sua tetralogia da margem. Ele filmou catadores de lixo de São Paulo, todos dotados de consciência de classe e organizados em movimento. Os catadores aparecem eventualmente narrando suas próprias imagens num estúdio (à la Jean Rouch), enunciando suas ideias políticas ou empenhados no seu agitado dia-a-dia. Este doc não tem a mesma força dos dois primeiros (À Margem da Imagem e À Margem do Concreto), talvez por serem frutos de uma fase de transição na carreira de Mocarzel. As cenas de trabalho na rua, gravadas principalmente pelo diretor de fotografia Gustavo Hadba, são ricas em angulações e detalhamento da ação dos catadores, evidenciando um forte desejo de experimentação por parte do diretor. O filme é pontuado por três sequências magistrais que mostram o processo de reciclagem de papel, plástico PET e alumínio. Evaldo inspirou-se em Dziga Vertov e na escola soviética para propor uma edição baseada em estrofes matemáticas de fotogramas. São pequenos ensaios de puro ritmo, cor e movimento, que me lembraram também o curta O Canto do Estireno, de Alain Resnais (1958).
Quebradeiras é um rompimento quase completo com o compromisso expositivo habitualmente associado ao doc etnográfico. Seu retrato das quebradeiras de coco de babaçu da região fronteiriça de Maranhão e Tocantins é puramente lírico, mítico e musical. As imagens de Gustavo Hadba estão entre as mais belas do documentário brasileiro recente. Enquadramentos primorosos, pontos-de-vista inesperados, uma atenta exploração da poética da luz, da natureza exuberante e das conexões entre o movimento do trabalho, das danças e do simples viver das mulheres.
O elemento feminino se manifesta na forma de iaras nuas, mães amamentadoras, camponesas cantadeiras, divas vaidosas. As quebradeiras veem as palmeiras de babaçu como mulheres. Evaldo segue a trilha desse panteísmo e extrai uma beleza incomum - e incomum não apenas para seus filmes comumente ‘sujos’ de tanta realidade. Em Quebradeiras, pela primeira vez Evaldo dispensa completamente as entrevistas. Valoriza o silêncio, a observação de um cotidiano delicadamente encenado, a edição que às vezes transforma o trabalho em música. Toda a informação vem pela estética, seja das imagens virtuosísticas, seja dos cantos que modulam todo o filme.
Quebradeiras foi produzido com recursos do edital Etnodoc, que recentemente divulgou os resultados de sua segunda seleção.

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