‘Um épico do
compartilhamento’
O longa evoca o modelo das
sinfonias documentais que marcaram a década de 1920.
C&N
No dia 24 de julho de
2010, eu vi uma sessão de curtas no
Anima Mundi e recebi em casa a minha amiga Marília
Martins,
que acabava de voltar de uma temporada em Nova York. Muita coisa
aconteceu pelo mundo naquele sábado. Um menino ganhou trocados nas ruas de
Lima, um rapaz americano pegou o telefone e contou à avó que era
gay, uma mulher chorou sozinha na cama em algum ponto da
Europa, um fotógrafo saiu mostrando que Cabul não era só
guerra,
muita gente se feriu num acidente de multidão em Duisburg, um homem
desmaiou enquanto filmava o parto do seu filho no Brasil…
Flashes desse dia, um dia como outro qualquer, compõem o
primeiro
doc colaborativo a circular internacionalmente em salas de
cinema.
O projeto “A Vida em um
Dia” é a ponta mais visível de
um
novo iceberg na linguagem dos documentários: sai o filme de autor, entra o
filme
de curador. No Brasil não tem sido diferente. Eduardo
Coutinho fez a ‘curadoria’ de programas de
TV
em “Um Dia na Vida”. Já em “Pacific”,
Marcelo
Pedroso trabalhou exclusivamente com vídeos de turistas em cruzeiros a
Fernando de Noronha. Diante da massa de produção individual e caseira
que
surge a cada dia na era digital, cabe a curadores buscar e organizar
sentidos,
com vistas a criar novas obras a partir do já criado. De certa forma, somos
todos curadores quando precisamos administrar, selecionar, favoritar e
arquivar
o que nos atrai e interessa. Mas Kevin MacDonald (“One Day in
September”, “Touching the Void”,
O
Último Rei da Escócia”) foi proativo na sua ideia: através
do
Youtube, convocou a todos que quisessem filmar aquele 24 de
julho
em suas vidas e suas cidades, e postar o resultado no megasite.
Resultaram 88.000 inscrições de 192
países,
gerando 4.500 horas de vídeo. Com isso
MacDonald montou os 93 minutos de “Life in a
Day”.
De alguma
forma, o
longa
evoca o modelo das sinfonias documentais que marcaram a década de
1920,
mostrando em fragmentos o decorrer de um dia na vida de cidades como
Berlim, Moscou, Paris e São Paulo. Em
“A Vida em um Dia”, o início na madrugada e o
percurso aproximado da jornada sugerem uma sinfonia mundial. Dentro desse
circuito macro, MacDonald criou circuitos menores, unificados por
temas
(trabalho, romance, nascimentos, alimentação, violência e dor etc), certos
padrões de movimento (caminhadas, atletismo) e perguntas específicas (o que
você
carrega no bolso ou na bolsa? O que você mais ama? O que você mais
teme?).
Esse
carrossel de cenas públicas e
privadas -
muitas corriqueiras, algumas legitimamente dramáticas, outras bastante
divertidas - formam uma espécie de elogio do banal. Ou melhor, mostram que o
banal pode assumir um valor poético ou singular quando oferecido ao olhar
que
não sabe o que esperar do próximo minuto. Além disso, há uma profunda
singeleza
nesse oferecimento de si e do seu entorno pelo simples prazer de
compartilhar.
“A Vida em um Dia” talvez seja o
primeiro épico cinematográfico da idade do
compartilhamento.
E você, é capaz de lembrar e
compartilhar algo que fez em 24/7/2010?
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