19 de julho de 2012

Observações à beira da estrada


Observações à beira da estrada
Descontadas as distâncias entre livro e filme, Na Estrada é um bom filme.
C&N
Um dos filmes mais esperados dos últimos tempos, Na Estrada chega às telas brasileiras sob o peso de uma imensa expectativa e de cobranças amplificadas pelo fato de ser dirigido por um cineasta brasileiro. Tenho minhas próprias observações sobre esse processo de dar imagem e movimento às andanças dos velhos beats:
1. Nem tudo de insuficiente em Na Estrada pode ser debitado à adaptação escrita por José Rivera e dirigida por Walter Salles.
O caráter episódico, por exemplo, é fundamental para a experiência vivida por Kerouac e seus companheiros. Eles obedeciam ao imperativo de mover-se, “única função nobre de nossa época”, qual seja o fim da década de 1940. No livro como no filme, os personagens cruzam o país diversas vezes de Leste a Oeste e vice-versa. Sem um mapa, é praticamente impossível acompanhar a geografia desses deslocamentos. Leitores e espectadores farão melhor se desativarem o GPS e curtirem a viagem como coisa sem rumo definido. Em todo caso, é bom saber que Kerouac via “algo cinzento e sagrado no Leste, enquanto a Califórnia é clara como roupa no varal e tem a mente vazia”. E se Denver é citada 25 vezes no filme, no livro isso se conta às muitas dezenas, tal foi a obsessão que o autor desenvolveu pela capital do Colorado.
Um certo ar de ingenuidade, apesar das drogas e da transgressão, chega até a tela, e isso tampouco é problema do filme. Não há como ler hoje On the Road sem provar do envelhecimento de seu ideário. Os beats foram fundamentais para o surgimento da contracultura, do movimento hippie, etc, mas junto com a influência veio também a superação. Muito do estilo mochileiro do texto, com suas inflexões que ecoavam o ritmo do jazz e do bebop, soa hoje bastante infantilizado para aqueles galalaus cujas delinquências pouco iam além de tirar a roupa e roubar gasolina e junk food pelas estradas da América.
2. Em outros aspectos a adaptação pode, sim, ser responsabilizada.
O mais grave deles, a meu ver, é não conseguir fazer de Dean Moriarty o personagem supostamente fascinante que Kerouac descreve. Discordo da maioria dos colegas críticos que exaltam a atuação de Garrett Hedlund nesse papel. Em nenhum momento ele atinge o grau de loucura do Dean original, nem sugere a criatura maior-que-a-vida descrita por Kerouac. A exuberância de Dean estava não apenas nas ações, mas no uso delirante e poético das palavras. O roteiro do filme não abre espaço para isso se manifestar.
Concordo, porém, com quem acha o filme bem comportado demais. E isso não diz respeito tanto às ações da turma. Carlo/Ginsberg, por exemplo, está até mais explícito na sua homossexualidade que no livro, servindo para sublinhar a homoafetividade latente entre os personagens masculinos. A cena da masturbação dupla no carro foi uma criação do filme, que investe razoavelmente nas fichas da sensualidade. O déficit de indisciplina, a meu ver, não está aí, mas na caracterização do que existia de underground na aventura dos caras. A fome, a falta de higiene e as bordas da mendicância, sempre presentes nas páginas, têm presença muito breve na tela.
Um dos princípios beats mais importantes era a rejeição da “tristeza branca”. Daí que Kerouac frequentemente se identificasse com negros, mexicanos, índios, etc, ou aspirasse a ser como um deles. No filme, vemos rapazes brancos e bem apessoados que sequer tangenciam essa aspiração. Nesse sentido, a entrada no México, que no livro é uma apoteose (“a terra mágica que ficava no final da estrada”), chega ao cinema bastante esvaziada, como se fosse um epílogo já meio cansado, cheio de cactos, mas desprovido do sentido de “iluminaçãopsicodélica que o escritor lhe atribuiu.
Pode-se argumentar também que a estrada mereceria figurar com mais densidade no filme. Os lugares são tão personagens quanto as pessoas, daí que uma visão mais detida das paisagens e de uma fenomenologia da estrada faria jus a sua importância no original. A estrada, em Salles, aparece mais como rápidos intervalos entre as cenas do que como matéria mesmo da história.
3. Descontadas as distâncias entre livro e filme, assim como entre os anos 1940 e a atualidade, é preciso dizer que, ainda assim, Na Estrada é um bom filme.
A condução de elenco, decupagem e ritmo interno das cenas é impecável por parte de Walter Salles. A música desempenha a função que era de se esperar num filme sobre os beats, marcando o tom desde antes mesmo de aparecer a primeira imagem, estendendo-se na cadência de muitas sequências e na trilha atmosférica de Gustavo Santaolalla.
Uma belíssima e cuidadosa produção garante a qualidade da reconstituição de época, da escolha de locações e a criação de imagens muito sugestivas ao longo de todo o filme. Nenhuma dessas imagens, talvez, seja tão simples e poderosa quanto as que mostram uma estrada vazia seguida de uma página em branco na máquina de Sal Paradise. Esse momento feliz de síntese remete não apenas à essência da atitude literária de Kerouac, mas também ao desafio supremo que foi levá-la ao cinema.

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