24 de julho de 2012

“Sunday In The Park With George”


Sunday In The Park With George
Em uma ilha no rio num domingo qualquer’.
C&N
Como será que surgem as idéias? De onde vem a inspiração? Lendo um livro? Observando o mundo a sua volta? Após 99% de transpiração? Da cabeça? Do coração? Depois de um brainstorm? No meio de um sonho? Ou realmente Calíope, Euterpe, Terpsícore e as demais Musas descem até nós, pobres mortais? No caso de James Lapine (libreto e direção) e Stephen Sondheim (música e letras) provavelmente veio após uma visita ao Art Institute of Chicago... Ou folheando Os Gênios da Pintura, quando se depararam com a obra prima do pontilhismo francês, o quadro Un Dimanche Après-midi à l'Île de La Grande Jatte (Uma Tarde de Domingo na Ilha de La Grand Jatte, 1884 - clique aqui), do pintor Georges Seurat.
Sunday in the Park With George marcou a primeira parceria da dupla, após seis produções em seguida de Sondheim com o diretor Harold Prince, encerrada após o fracasso e a recepção fulminante da crítica para Merrily We Roll Along, em 1981 (o show fechou após 16 apresentações e Sondheim anunciou que iria abandonar o teatro musical para escrever livros de mistério!). Esta obra, intensamente pessoal e especialmente desafiadora e difícil, se deu quando Lapine, que nunca havia trabalhado com teatro musical antes, percebeu que faltava uma figura principal na tela: o próprio artista. Assim, o musical ficcionaliza, num grande exercício de criatividade, a vida de Seurat, permitindo a seus autores demonstrar seus sentimentos com relação à arte e ao processo de criação artística. Para tanto Sondheim & Lapine concentram-se na narrativa da criação de um quadro, e a vida de seu autor. Este show demonstra a preocupação de Sondheim em pesquisar os temas mais variados, e absolutamente inesperados do teatro musical; pesquisa que continuaria com seus trabalhos seguintes, como Into the Woods e Assassins.
Georges Seurat foi um pintor impressionista francês, um artista obcecado pela técnica, que há mais de 120 anos (morreu em 1891) disse que queria fazer alguma coisa nova, um tipo de pintura que fosse uma criação própria, sem nenhum tipo de influência. Acabou surpreendendo o mundo com sua teoria do pontilhismo, onde a justaposição de pontos de várias cores cria uma nova cor.
O show estreou em maio de 1984 e, no primeiro ato, que tem lugar na ilha, exatos cem anos antes, em 1884, George (Mandy Patinkin) está ocupadíssimo, pintando os parisienses desfrutando de um dia de folga em um parque às margens do Sena. Somos apresentados aos personagens e seus relacionamentos uns com os outros, em particular o relacionamento de George com Dot (Bernadette Peters), sua modelo e amante. Entretanto as preocupações do artista com seu trabalho e a luta com seus demônios, faz com que o romance deles esteja fadado, e a modelo, que está grávida, aceita a oferta de casamento de um padeiro. No finale do primeiro ato, temos um dos momentos mágicos e mais antológicos dos palcos da Broadway: o instante em que Seurat dá ordem ao caos, terminando sua obra-prima, congelando os personagens num tableau vivant, exatamente como na pintura original (clique Sunday). É um dos momentos mais emocionantes do cânone de Sondheim. O segundo ato dá um salto para o presente, em Nova York, onde o bisneto do pintor, um escultor multimídia também chamado George, quer atingir a sua própria realização artística como o bisavô. Ele está num impasse criativo após completar seu sétimo Chromolume. Logo sua confiança é restaurada. Contudo, quando ele visita La Grand Jatte é instado pelo fantasma da sua bisavó a parar de se preocupar sobre o que os outros pensam e continuar seguindo em frente (clique Move On - conforme exibida no Tony 2008).
Na vida real nenhum dos filhos de Seurat sobreviveu à infância e ele não teve netos. Sua esposa de direito foi Madeleine Knobloch, que deu a luz aos seus dois filhos, o segundo após a morte dele. Ao contrário de Dot na história, ela viveu com Seurat até a sua morte, aos 32 anos, e nunca imigrou para a América, morrendo de cirrose hepática aos 35 anos.
Sunday in the Park With George, que foi primeiro encenado como workshop em 1983, acabou sendo um típico caso de desentendimento entre os críticos. Dificilmente um musical despertou tanta controvérsia, como o que aconteceu com SITPWG (como o título é abreviado pelos fãs, que gostam de se referir a outros shows de títulos longos como HTSIBWRT - How to Succeed in Business... e AFTHOTWTTF - A Funny Thing Happened...). Apesar dos muitos elogios para Mandy e Bernadette, ele foi considerado um musical menor, com 604 apresentações. Mesmo assim acabou ganhando o Prêmio Pulitzer de 1985 para drama; nomeado a 10 Prêmios Tony (vencendo nas categorias de iluminação e cenografia), e conquistando o Drama Desk Award e o New York Drama Critic’s Circle Award de Melhor Musical. Em 1994, o elenco original voltaria à Broadway para um concerto comemorativo dos 10 anos. A remontagem londrina, de 2006, usando recursos tecnológicos (ver Move On acima) e projeções em telões como se fossem telas em branco, acabou estreando na Broadway em 2008, sem chegar a 150 apresentações. Trazendo no elenco Daniel Evans (George) e Jenna Russell (Dot) conquistou o Prêmio Laurence Olivier de melhor musical, atores, cenário e iluminação.
Em outubro de 1985 o musical foi gravado em vídeo pela Showtime com praticamente todo o elenco original da Broadway. Após ser transmitido pela TV americana foi lançado em VHS, laserdisc e finalmente em DVD que aqui no Brasil saiu pela Top Tape, legendado em português, aliás, com muitos erros de tradução. Em compensação podemos conferir a incrível beleza visual do espetáculo.
Duas gravações do musical foram feitas e estão disponíveis em CD. A primeira e definitiva é sem dúvida a do Elenco Original da Broadway, de 1984 (RCA), um dos trabalhos mais inesquecíveis e distintos de Sondheim, que em sua essência é uma meditação sobre a natureza da arte. Apesar do show ser criticado pela disparidade entre seus dois atos, cada um dá coesão ao outro, nos trazendo um score colorido e com profundidade. Sondheim reflete o estilo de pintura único de Seurat através do uso de notas em staccato, fazendo com as tonalidades musicais aquilo que o pintor fez ao trabalhar os pigmentos. Canções como Color and Light’ e ‘Finishing the Hat’ (aqui com Daniel Evans) são particularmente notáveis em som e textura. (to) Finish the Hat virou uma expressão entre os artistas do teatro musical significando algo como fazer bem o trabalho. O segundo ato começa com a divertida ‘It’s Hot Up Here’, cantada pelos personagens na pintura, seguida pela brilhante cena musical ‘Putting It Together’  (sobre as tentativas de George em levantar dinheiro - aqui cantado por Barbra Streisand em versão especialmente adaptada por Sondheim para ela e que mais tarde daria nome a outro show dele), ‘Children and Art’  (aqui na interpretação de Marilyn Michaels – sobre o que deixamos após a nossa morte), e Lesson #8 (sobre a constante mutação da natureza da arte e da vida). Mandy Patinkin e Bernadette Peters nos dão talvez os melhores trabalhos de suas carreiras, ficando associados definitivamente a Sondheim e gravando, mais tarde, songbooks do compositor.
A outra gravação é a 2006 London Revival Cast Recording (PS Classics), onde temos uma rara regravação deste que é um dos musicais mais bonitos na mesma medida que também é um dos mais incompreendidos. Aqui o desafio é bem cumprido num CD duplo e mais completo, onde Daniel Evans, Jenna Russell (aqui cantando 'Sunday in the Park with George') e o resto do elenco capturam a beleza, a complexidade e o humor da música sondheimiana. Algo ao mesmo tempo interessante e dispersivo é a utilização de sotaques. Embora o primeiro ato tome lugar na França, ninguém usa sotaque francês. Por ser esta uma produção inglesa, os atores utilizam sotaque britânico para o primeiro ato que é trocado por sotaque americano no segundo ato (que se passa nos EUA). O uso de sotaques também serve para indicar a classe social dos personagens. Enquanto George usa tons mais decididos, Dot fala com um leve sotaque cockney, ajudando a dimensionar de uma nova forma a relação entre eles. A orquestra, apesar de reduzida, tem um grande som com uma musicalidade inigualável com ritmos vibrantes, os stacatti e pontuados sensacionais e os pianos e fortes arrebatadores. Como bônus temos a faixa com a versão longa de "The One on the Left", cantada pelos dois soldados e pelas duas Celestes (Christopher Colley, Sarah French Ellis e Kaisa Hammarlund). Traz ainda um belo encarte contendo a sinopse, o libtreto integral e comentários.
SITPWG é um dos scores mais acessíveis de Sondheim e uma de suas melhores realizações, embora leve tempo para crescer dentro de você, e sendo preciso algumas audições para sua total apreciação.
No começo deste artigo perguntamos: Como será que surgem as idéias? De onde vem a inspiração?No final de Sunday in the Park with George talvez tenhamos uma pista, quando George termina de ler o diário de seu bisavô onde está escrito: Branco. Uma tela vazia. E são tantas as possibilidades…”
Cláudio Erlichman é publicitário e produtor cultural.

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