15 de maio de 2012

“1776”


1776
Se você fosse Thomas Jefferson e não tivesse visto a sua mulher por seis meses, você não iria terminar de escrever a Declaração de Independência no minuto em que Betty Buckley entrou pela porta?. - Stuart Ostrow para Peter Stone e Sherman Edwards, em seguida à audição de Buckley.
C&N
Sherman Edwads era um professor de história que decidiu escrever um musical sobre os Founding Fathers of the United States, ou seja aqueles homens que assinaram a Declaração de Independência dos Estados Unidos, em 1776. Peter Stone, o libretista, disse que quando ele falava para as pessoas que ele estava trabalhando num show chamado “1776”, soava tão enfadonho que eles cairiam no sono entre o 17 e o 76! Mas embora parecesse tedioso, “1776” é um grande musical, com um excelente score. Ele ganhou o Tony de melhor musical de “Hair”, mas não é um show indigesto e de direita como possa parecer. Se há alguma coisa, é o povo que quer mudanças, não os conservadores, que são os heróis. O show também deu a Gary Beach (“La Cage aux Folles”), um dos atores darlings da Broadway, sua primeira incursão ao Great White Way. Ele pegou o papel de Rutledge quase no final da temporada. O musical levou ainda os Tonys de ator coadjuvante (Ron Holgate) e direção (Peter Hunt).
1776 também marcou a estreia na Broadway da diva Betty Buckley, então com 21 anos. Como num filme hollywoodiano, Betty acabara de chegar do Texas, descobriu no último minuto que faria uma audição, era a última garota da fila, e pegou o papel - tudo no seu primeiro dia em Nova York!!!
A melhor gravação deste que é um dos maiores hits da Broadway é a da ‘Original Broadway Cast’ (Columbia/Sony - 1969). Embora o libreto de Peter Stone tivesse recebido os elogios, o score de Edwards é inteligente ao cumprir a sua função, sendo repleto de personagens, sabor e vários níveis de emoções. Esta gravação documenta um score - com grande orquestração de Eddie Sauter e direção musical de primeira qualidade de Peter Howard - naquilo que há de mais estimulante e excitante. William Daniels é o John Adams definitivo, exibindo uma combinação de fogo, gelo, desespero e humor seco em canções como ‘Piddle, Twiddle and Resolve e ‘Is Anybody There?’.
Rex Everhart também se sai consideravelmente bem como um Benjamin Franklin irreverente e meio indecente, substituindo Howard da Silva - do elenco original - que havia sofrido um enfarte e não participou das sessões de gravação, mas retornaria ao show mais tarde. Ken Howard dá carisma e simpatia sinceros ao seu Thomas Jefferson, e a alegre grandiloquência que Ron Holgate dá a Richard Henry Lee é contagiante. Paul Hecht e Clifford David fazem oponentes formidáveis na busca pela independência de Adams. ‘Molasses to Run’ onde Clifford David, como Edward Rutledge, aceita o infame Triangle Trade (o tratado sobre o tráfico negreiro nas colônias inglesas), é um dos momentos mais brilhantes e assustadores do CD.
Entre as melhores faixas também destaco ‘But Mr. Adams’. Aqui, para quem foi bom aluno de história, é onde descobrimos que não foi um nobre ideal que fez Thomas Jefferson escrever a Declaração de Independência - é porque ninguém mais queria fazê-lo. Eu adoro o diálogo exagerado no meio, onde Jefferson conta a Adams que ele não pode escrevê-la porque ele pretendia passar o tempo fazendo você sabe o quê com a sua esposa. Adams admite que ele quer fazer a mesma coisa! Não com Jefferson, mas com a Sra. Adams (não creio que o swing estivesse em voga nos anos 1770) - aliás, Abigail Adams é uma atuação vibrantemente romântica feita por Virginia Vestoff. A gente nunca pensa que estes personagens históricos - a não ser o nosso D. Pedro I - faziam sexo. Mas este show nos faz pensar. Preste também atenção na harmonia no final da canção, na última palavra. O tenor principal primeiro atinge uma nota menor e, em seguida, resolve-se para uma nota maior. A tensão é devastadora e o resultado... Delicioso!
Outra faixa ótima é a timidamente sugestiva ‘He Plays the Violin’, uma canção que também faz referências sexuais sobre os Founding Fathers, ao descrever porque Martha Jefferson tem o maior tesão por Thomas Jefferson. Ela diz que não é seu jeito com as palavras, mas o modo como ele toca violino (insira-se aqui a piada do arco de violino). Sherman Edwards não só escreveu uma ótima canção, mas ele a imbuiu com simbolismos. A melodia em si é baseada no violino. As notas que se salientam no verso “He plays the vi-o-lin” são os intervalos das cordas de um violino. Puro truque! Betty Buckley só tinha uma cena no show, que se encerrava com esta canção. Hoje em dia, em shows como “Les Mis” e “Wicked”, o alto-belting é obrigatório. Mas naqueles dias ninguém beltava essas notas. O belt penetrante e claro de Buckley pavimentou o caminho de Laurie Beechman, Idina Menzel e outras cantrizes da Broadway.
Seguiu-se a esta montagem uma breve produção londrina, em 1970, e a remontagem na Broadway, de 1995. Com muitos dos atores principais mantidos, a versão para o cinema foi realizada em 1972, e pode ser considerada uma das mais fiéis transposições do palco para a tela já realizada. Daniels, Vestoff, Howard e Holgate recriaram seus papéis e na gravação da trilha-sonora (não disponível em CD, mas disponível em DVD) parecem soar melhores ainda do que na gravação do cast album. Howard da Silva finalmente pode gravar seu Benjamin Franklin e está delicioso no papel. Blythe Danner é uma Martha Jefferson mais suave, mais eficaz só que menos cantora que Betty Buckley. John Cullum assume o papel de Rutledge e proporciona uma sólida interpretação para ‘Molasses to Run’.
Uma curiosidade: os homens em 1776 que não querem a independência da Grã Bretanha são os conservadores. Eles cantam a música ‘Cool, cool Considearate Men’ com letra sobre ficar somente do lado da direita e recusar estar na esquerda do poder. Quando o filme foi feito, o então Presidente Richard Nixon fez lobby junto ao produtor Jack Warner para cortar a canção porque ele pensou que a mesma poderia ser considerada antirrepublicana. A pressão de Nixon deu certo e a canção foi cortada. Imagine então a mídia sendo forçada a não fazer o governo parecer mau. Felizmente a canção foi reestabelecida quando o DVD do filme foi lançado.
Sherman Edwards, que depois escreveria algumas canções pop menores para adolescentes, surpreendeu a todos com o score de “1776” - seu primeiro e único para os palcos da Broadway. Assim como Meredith Willson ficou famoso por “The Music Man”, ele parecia ter apenas realmente um único e bom show dentro dele. Mas tão bom quanto o score de Edwards (e muito dos louros têm que ir para as orquestrações de Eddie Sauter e o elenco), o libreto de Peter Stone é uma revelação. Ele criou um milieu realista e personagens tridimensionais, e imbuiu o processo - discussões políticas um tanto sólidas e arcaicas - com um sentido real de premência e drama.
Cláudio Erlichman é publicitário e produtor cultural.

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