‘‘Palma de Ouro’ para o Brasil: há 50 anos’
Em maio de
1962,
“O Pagador de
Promessas” recebeu o prêmio maior do ‘Festival Internacional de Cannes’.
C&N
Na
tarde
do dia
23 de maio de 1962, em São Paulo, estava
trafegando pela Av. São Luiz, no carro conduzido pelo cineasta
Walter Hugo Khouri, de quem eu era assistente, quando nos vimos
diante do
noticiário luminoso do jornal ‘O Estado de São Paulo’ que
informava: ‘Cannes, urgentíssimo. O filme
brasileiro “O Pagador de
Promessas” acaba de ser contemplado com a Palma de
Ouro
do 15º Festival Internacional de Cinema
de Cannes.’. Foi uma euforia e um espanto. Khouri
desligou o motor da Romi Iseta. Quase ninguém, nem ele e nem
eu,
acreditava na possibilidade do filme vencer naquele certame.
A nossa
surpresa
tinha certa carga de culpa. Uns quinze dias antes do início do festival, o
produtor Oswaldo Massaini (1920-1994) deu uma festa, na véspera da
viagem
que ele e Anselmo fariam de navio: ambos tinham medo de avião. Na
ocasião, Anselmo reafirmou com ênfase que iria trazer a Palma
de
Ouro. Na sua frente todos concordavam, mas, fora de suas vistas,
muitos
externavam a opinião de uma possível derrota diante de concorrentes de peso
como
“O Eclipse”, de
Antonioni, “O Anjo
Exterminador”, de Buñuel, “Tempestade Sobre Washington”,
de
Preminger, “Os
Inocentes”, de Jack Clayton, e “Divórcio à Italiana”, de
Germi, entre outros. Contrariando nossas previsões, o júri, que
incluía
os diretores Mario Soldati e François Truffaut, outorgou o
prêmio
máximo ao longa brasileiro.
Khouri ligou o motor e fomos
para o
escritório da Cinedistri (a empresa de Massaini) na Rua do
Triunfo, na Boca Lixo. Lá chegando, encontramos Seu
Martins (o
vice-diretor da Cinedistri) liderando um clima de festa entre amigos
e
funcionários. Logo chegaram Iracema Massaini, esposa de
Oswaldo,
os então pequenos filhos Aníbal e Osvaldinho, bem como
Carlos
Coimbra, que tinha atuado como editor. O cinema
brasileiro já
havia
ganhado alguns prêmios internacionais, mas jamais um dessa envergadura.
Havia a
consciência de que aquela data se tornaria histórica.
A vitória em
Cannes
foi o
momento maior na carreira de muitas pessoas, principalmente na de Anselmo
Duarte (1920-2009), paulista de Salto, que ganhou
popularidade como ator em produções da Atlântida e da
Vera
Cruz, para depois enveredar pela direção. Obstinado,
por
muitos anos se propôs a fazer um filme capaz de ganhar a Palma de
Ouro. Logo após estrear como diretor em “Absolutamente Certo” (1957),
ele
passou bom tempo na Europa, atuando em realizações de Portugal
e
Espanha, e frequentando o certame francês. No retorno, garantiu saber
quais as fórmulas que poderiam possibilitar a láurea maior do festival. Por
isso, escolheu a peça “O Pagador
de
Promessas”, após assisti-la no TBC (Teatro
Brasileiro
de Comédia). O texto, de Dias Gomes, permite forte
crítica social à intolerância na Igreja Católica e um enfoque do
típico
misticismo da Bahia.
Com esses
aspectos
que
resvalam no exótico, surgiu uma vigorosa transposição cinematográfica em
preto e
branco, que acabou causando impacto no festival e no planeta. O ator
principal,
o então estreante Leonardo Villar (a quem tive o prazer de dirigir em
“Amor de Perversão”, em
1982),
também impressionou a crítica europeia. Ele havia feito Zé do
Burro no palco, mas não se acomodou em um desempenho teatral; em vez
disso, fez um trabalho interior que caminha para a raiva.
A raiva também contaminou
Anselmo nos anos seguintes. Alternando trabalhos fracos e fortes como
diretor (nesse sentido, saliento “Quelé do Pajeu” e “O Descarte”), ele foi
ficando
cada vez mais ressentido, com ataques da crítica e ironias algo
desrespeitosas,
espalhadas por alguns marqueteiros do Cinema Novo. Acabou
vendo
inimigos até entre os amigos, entre os que o queriam bem. E, cerca de vinte
anos
depois da vitória em Cannes, magoou profundamente Oswaldo
Massaini, quando pediu emprestada a Palma de Ouro que,
desde
1962 estava em uma vitrina na sala de espera do seu escritório, na
Cinedistri. O cineasta não a devolveu. Na época do festival, o
troféu era entregue ao produtor. Nada mais justo Massaini colocá-lo
ali,
em plena Boca do Lixo.
“O Pagador de Promessas” foi
planejado e executado naquele local, sede da empresa
Cinedistri.
Hoje, passados 50 anos, a sua vitória internacional e o seu
grande
êxito de público também no Brasil, podem ser considerados tentos do
cinema feito na Boca, então sem mecenato oficial. Uma prova
incontestável
da diversidade que ali existia, já que havia vez para realizações
iconoclastas,
dramas românticos, políticos, sociais, policiais, comédias sertanejas e
também
tramas essencialmente eróticas. Uma prova da racionalidade que predominava
na
execução de seus filmes, ao contrário do que muitos apregoam de forma
predatória, quando colocam tudo que veio daquela região sob o rótulo de
pornochanchada.
Mas, acima de tudo, “O Pagador de Promessas” foi
uma
vitória do cinema brasileiro que se preocupa em emocionar, em ter fluência.
Cinquenta anos depois, é preciso não esquecer aquela Palma de
Ouro, a única dada a um longa brasileiro. Lembrá-la, neste momento,
chega a ser triste diante da atual incapacidade da maioria de nossos filmes
em
alcançar o grande público.
Mas essa já é uma outra
questão.
Alfredo
Sternheim é
cineasta,
jornalista e
escritor
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