21 de maio de 2012

‘‘Palma de Ouro’ para o Brasil: há 50 anos’


‘‘Palma de Ouro para o Brasil: há 50 anos
Em maio de 1962, “O Pagador de Promessas recebeu o prêmio maior do Festival Internacional de Cannes’.
C&N

Na tarde do dia 23 de maio de 1962, em São Paulo, estava trafegando pela Av. São Luiz, no carro conduzido pelo cineasta Walter Hugo Khouri, de quem eu era assistente, quando nos vimos diante do noticiário luminoso do jornal ‘O Estado de São Paulo’ que informava: ‘Cannes, urgentíssimo. O filme brasileiroO Pagador de Promessasacaba de ser contemplado com a Palma de Ouro do 15º Festival Internacional de Cinema de Cannes.’. Foi uma euforia e um espanto. Khouri desligou o motor da Romi Iseta. Quase ninguém, nem ele e nem eu, acreditava na possibilidade do filme vencer naquele certame.
A nossa surpresa tinha certa carga de culpa. Uns quinze dias antes do início do festival, o produtor Oswaldo Massaini (1920-1994) deu uma festa, na véspera da viagem que ele e Anselmo fariam de navio: ambos tinham medo de avião. Na ocasião, Anselmo reafirmou com ênfase que iria trazer a Palma de Ouro. Na sua frente todos concordavam, mas, fora de suas vistas, muitos externavam a opinião de uma possível derrota diante de concorrentes de peso como “O Eclipse”, de Antonioni, “O Anjo Exterminador”, de Buñuel, “Tempestade Sobre Washington”, de Preminger, “Os Inocentes”, de Jack Clayton, e “Divórcio à Italiana”, de Germi, entre outros. Contrariando nossas previsões, o júri, que incluía os diretores Mario Soldati e François Truffaut, outorgou o prêmio máximo ao longa brasileiro.
Khouri ligou o motor e fomos para o escritório da Cinedistri (a empresa de Massaini) na Rua do Triunfo, na Boca Lixo. Lá chegando, encontramos Seu Martins (o vice-diretor da Cinedistri) liderando um clima de festa entre amigos e funcionários. Logo chegaram Iracema Massaini, esposa de Oswaldo, os então pequenos filhos Aníbal e Osvaldinho, bem como Carlos Coimbra, que tinha atuado como editor. O cinema brasileiro já havia ganhado alguns prêmios internacionais, mas jamais um dessa envergadura. Havia a consciência de que aquela data se tornaria histórica.
A vitória em Cannes foi o momento maior na carreira de muitas pessoas, principalmente na de Anselmo Duarte (1920-2009), paulista de Salto, que ganhou popularidade como ator em produções da Atlântida e da Vera Cruz, para depois enveredar pela direção. Obstinado, por muitos anos se propôs a fazer um filme capaz de ganhar a Palma de Ouro. Logo após estrear como diretor em “Absolutamente Certo” (1957), ele passou bom tempo na Europa, atuando em realizações de Portugal e Espanha, e frequentando o certame francês. No retorno, garantiu saber quais as fórmulas que poderiam possibilitar a láurea maior do festival. Por isso, escolheu a peça “O Pagador de Promessas”, após assisti-la no TBC (Teatro Brasileiro de Comédia). O texto, de Dias Gomes, permite forte crítica social à intolerância na Igreja Católica e um enfoque do típico misticismo da Bahia.
Com esses aspectos que resvalam no exótico, surgiu uma vigorosa transposição cinematográfica em preto e branco, que acabou causando impacto no festival e no planeta. O ator principal, o então estreante Leonardo Villar (a quem tive o prazer de dirigir em “Amor de Perversão”, em 1982), também impressionou a crítica europeia. Ele havia feito Zé do Burro no palco, mas não se acomodou em um desempenho teatral; em vez disso, fez um trabalho interior que caminha para a raiva.
A raiva também contaminou Anselmo nos anos seguintes. Alternando trabalhos fracos e fortes como diretor (nesse sentido, saliento “Quelé do Pajeu e “O Descarte”), ele foi ficando cada vez mais ressentido, com ataques da crítica e ironias algo desrespeitosas, espalhadas por alguns marqueteiros do Cinema Novo. Acabou vendo inimigos até entre os amigos, entre os que o queriam bem. E, cerca de vinte anos depois da vitória em Cannes, magoou profundamente Oswaldo Massaini, quando pediu emprestada a Palma de Ouro que, desde 1962 estava em uma vitrina na sala de espera do seu escritório, na Cinedistri. O cineasta não a devolveu. Na época do festival, o troféu era entregue ao produtor. Nada mais justo Massaini colocá-lo ali, em plena Boca do Lixo
O Pagador de Promessas” foi planejado e executado naquele local, sede da empresa Cinedistri. Hoje, passados 50 anos, a sua vitória internacional e o seu grande êxito de público também no Brasil, podem ser considerados tentos do cinema feito na Boca, então sem mecenato oficial. Uma prova incontestável da diversidade que ali existia, já que havia vez para realizações iconoclastas, dramas românticos, políticos, sociais, policiais, comédias sertanejas e também tramas essencialmente eróticas. Uma prova da racionalidade que predominava na execução de seus filmes, ao contrário do que muitos apregoam de forma predatória, quando colocam tudo que veio daquela região sob o rótulo de pornochanchada.
Mas, acima de tudo, “O Pagador de Promessas” foi uma vitória do cinema brasileiro que se preocupa em emocionar, em ter fluência. Cinquenta anos depois, é preciso não esquecer aquela Palma de Ouro, a única dada a um longa brasileiro. Lembrá-la, neste momento, chega a ser triste diante da atual incapacidade da maioria de nossos filmes em alcançar o grande público.
Mas essa já é uma outra questão.  
Alfredo Sternheim é cineasta, jornalista e escritor

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