24 de maio de 2012

“A Voz Humana”


A Voz Humana
Mostra Pierre Perrault, no Rio desde a última sexta-feira, e aporta em São Paulo em 11 de junho.
C&N
Pierre Perrault começou a fazer documentários no rádio, nos anos 1950. Colhia as falas de trabalhadores e gente comum para seu programa na Radio-Canada. Deixou-se seduzir especialmente pelas histórias dos pescadores, marinheiros e caçadores que viviam às margens do Rio St. Laurent. Alguns desses personagens seriam levados ao cinema quando surgiram as câmeras leves e o som direto, no início dos anos 60. “Pour la Suite du Monde (“Para que o Mundo Prossiga), realizado por Perrault e Michel Brault em 1962, ia se tornar um clássico, o primeiro longa do cinema direto. Ele é um dos carros-chefe da Mostra Pierre Perrault, que chegou ao Rio na última sexta-feira e aporta em São Paulo (CINUSP) a 11 de junho.
Com 31 documentários do diretor, produzidos entre 1958 e 1994, e mais três filmes sobre ele, a mostra vai percorrer seis capitais brasileiras apresentando o conjunto de um trabalho pouco conhecido por aqui. Perrault esteve no Rio, na Mostra do Filme Etnográfico, em 1996, quando se encontrou com Jean Rouch. Mas quantos de nós já viram sua famosa trilogia sobre os habitantes da Île-aux-Coudres ou os filmes que ajudaram a construir uma ideia de cinema tipicamente quebequense?
Por se basearem fortemente na fala e nas tradições populares, os filmes de Pierre Perrault inspiraram um certo nacionalismo no Québec, espremido num país majoritariamente anglófono. Mas seu enfoque vai além do registro preservacionista e tangencia uma poética do real. Em “Pour la Suite du Monde”, por exemplo, a fascinação dos pescadores pelos marsouins (belugas, ou pequenas baleias brancas) é tão importante quanto o projeto de capturá-las. A pesca da beluga torna-se mais uma tradição a ser conservada no vilarejo muito católico, assim como as festas da Micarena (Meia-Quaresma) ou a devoção às ‘almas do purgatório’.
Por pouco essa obra-prima não existiria dessa forma. Perrault queria representar os habitantes da Île-aux-Coudres com atores profissionais. Foi o cineasta Fernand Dansereau quem apresentou Perrault a Michel Brault, levando o projeto para a seara então nascente do documentário de observação.
Na história do cinema documental, “Pour la Suite du Monde representa uma revolução na ideia de reencenação. Se Robert Flaherty, em “Nanook, o Esquimó e “O Homem de Aran”, dissimulou o fato de que estava encenando velhas práticas de pesca já em desuso, no filme de Perrault essa retomada é o próprio assunto do filme. Os ilhéus discutem como farão para reavivar um método abandonado havia quase 50 anos. Explicitamente, é o filme que os leva a se lançar mais uma vez à captura da beluga por meio de um cercado de varas no meio das águas. A câmera de Michel Brault (o cinegrafista de “Crônica de um Verão”) acompanha todo o processo de convencer os mais velhos, montar o aparato e mobilizar a vila para o grande momento. E por fim transportar uma beluga viva até um aquário em Nova York. Não há, portanto, encenação, mas uma ação deliberada de voltar-se para o passado a fim de manter viva uma tradição.
O prazer de ver o filme se espalha pela visão idílica da ‘Ilha das Avelaneiras’, a graça peculiar dos personagens e seu dialeto, a sensibilidade da câmera em seguir os passos e gestos das pessoas, a sutil passagem do encenado para o espontaneamente vivido.
Já no filme seguinte, “La Règne du Jour (“O Reino do Dia”), Perrault adota um procedimento mais, digamos, rouchiano. Sete anos depois do filme anterior, ele volta à Île-aux-Coudres e convida o velho Alexis Tremblay, sua mulher e o filho para uma viagem à Bretanha (França), a terra de seus antepassados. O filme foi montado com as filmagens da visita, que durou um mês, e os comentários do trio de volta ao Québec. O que eles fazem é cotejar os modos de vida rural dos dois países, em busca de continuidades e contrastes entre a mãe-França e o ‘filho abandonado’, o Canadá francófono. O tema do filme é a busca de uma matriz étnica, assim como a ilustração de uma dialética entre tradição e modernidade.
La Règne du Jour testemunha uma evolução do cinema de Perrault na direção de um estilo mais solto e uma montagem mais liberta do tempo real, inspirados talvez na descontração dos personagens em suas raríssimas férias turísticas. A família Tremblay, com suas discussões ásperas entre pai e filho e o carinho rústico entre os velhos cônjuges, forma um conjunto de personagens inesquecíveis que atravessam esses dois filmes.
Desconheço o restante da obra de Pierre Perrault e como ele levou adiante o pioneirismo dos canadenses no cinema direto. Sei, porém, que se manteve fiel ao procedimento de propor uma atividade ou uma viagem a seus personagens para assim revelá-los em plena ação.
Cerca de 20 filmes dele podem ser vistos na íntegra no site do Office National du Film du Canada, mas com a desvantagem de estarem quase todos sem legendas – e não adianta muito saber francês para decifrar o québécois predominante. Daí a importância dessa mostra subtitulada em português no Instituto Moreira Salles. Nos dias 24 a 26, no mesmo local, um colóquio sobre a obra de Perrault reunirá 18 estudiosos do documentário, incluindo Michel Marie, Phillipe Dubois, Marc-Henri Piault, Silvio Da-Rin e Fernão Ramos.
Confira aqui a programação e outras informações sobre o evento.

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