“A Voz
Humana”
Mostra
Pierre Perrault, no Rio desde
a última sexta-feira, e aporta em São
Paulo
em 11 de junho.
C&N
Pierre
Perrault
começou a fazer documentários no rádio, nos anos 1950.
Colhia as falas de trabalhadores e gente comum para seu programa na
Radio-Canada. Deixou-se seduzir especialmente pelas histórias dos
pescadores, marinheiros e caçadores que viviam às margens do Rio St.
Laurent. Alguns desses personagens seriam levados ao cinema quando
surgiram
as câmeras leves e o som direto, no início dos anos 60. “Pour la Suite du
Monde”
(“Para que o Mundo
Prossiga”), realizado por Perrault e Michel
Brault em 1962, ia se tornar um clássico, o primeiro longa do
cinema
direto. Ele é um dos carros-chefe da Mostra Pierre Perrault,
que
chegou ao Rio na última sexta-feira e aporta em São Paulo
(CINUSP) a 11 de junho.
Com 31
documentários
do diretor, produzidos entre 1958 e 1994,
e
mais três filmes sobre ele, a mostra vai percorrer seis capitais brasileiras
apresentando o conjunto de um trabalho pouco conhecido por aqui.
Perrault
esteve no Rio, na Mostra do Filme Etnográfico, em
1996, quando se encontrou com Jean Rouch. Mas quantos de nós
já
viram sua famosa trilogia sobre os habitantes da Île-aux-Coudres ou
os
filmes que ajudaram a construir uma ideia de cinema tipicamente
quebequense?
Por se
basearem fortemente na fala e nas
tradições populares, os filmes de Pierre Perrault inspiraram um certo
nacionalismo no Québec, espremido num país majoritariamente
anglófono.
Mas seu enfoque vai além do registro preservacionista e tangencia uma
poética do
real. Em “Pour la Suite du
Monde”, por exemplo, a fascinação dos pescadores
pelos
marsouins (belugas, ou pequenas baleias
brancas) é tão importante quanto o projeto de capturá-las. A pesca da beluga
torna-se mais uma tradição a ser conservada no vilarejo muito católico,
assim
como as festas da Micarena (Meia-Quaresma) ou a devoção às
‘almas
do purgatório’.
Por pouco essa obra-prima não
existiria
dessa forma. Perrault queria representar os habitantes da
Île-aux-Coudres com atores profissionais. Foi o cineasta Fernand
Dansereau quem apresentou Perrault a Michel Brault,
levando o
projeto para a seara então nascente do documentário de
observação.
Na história do cinema
documental, “Pour la
Suite
du Monde”
representa uma revolução na ideia de reencenação. Se
Robert Flaherty, em “Nanook, o Esquimó” e
“O Homem de
Aran”, dissimulou o fato de que estava encenando
velhas
práticas de pesca já em desuso, no filme de Perrault essa retomada é
o
próprio assunto do filme. Os ilhéus discutem como farão para reavivar um
método
abandonado havia quase 50 anos. Explicitamente, é o filme que os leva a se
lançar mais uma vez à captura da beluga por meio de um cercado de varas no
meio
das águas. A câmera de Michel Brault (o cinegrafista de “Crônica de um Verão”)
acompanha todo o processo de convencer os mais velhos, montar o aparato e
mobilizar a vila para o grande momento. E por fim transportar uma
beluga
viva até um aquário em Nova York. Não há, portanto, encenação,
mas
uma ação deliberada de voltar-se para o passado a fim de manter viva uma
tradição.
O prazer de ver o
filme se
espalha pela visão idílica da ‘Ilha das Avelaneiras’, a graça
peculiar
dos personagens e seu dialeto, a sensibilidade da câmera em seguir os passos
e
gestos das pessoas, a sutil passagem do encenado para o espontaneamente
vivido.
Já no filme
seguinte,
“La Règne du
Jour”
(“O Reino
do
Dia”), Perrault adota um procedimento mais, digamos,
rouchiano. Sete anos depois do filme anterior, ele volta à
Île-aux-Coudres e convida o velho Alexis Tremblay, sua mulher
e o
filho para uma viagem à Bretanha (França), a terra de seus
antepassados.
O filme foi montado com as filmagens da visita, que durou um mês, e os
comentários do trio de volta ao Québec. O que eles fazem é cotejar os
modos de vida rural dos dois países, em busca de continuidades e contrastes
entre a mãe-França e o ‘filho abandonado’, o
Canadá
francófono. O tema do filme é a busca de
uma
matriz étnica, assim como a ilustração de uma dialética entre tradição e
modernidade.
“La Règne du
Jour”
testemunha uma evolução do cinema de Perrault na
direção de um estilo mais solto e uma montagem mais liberta do
tempo real, inspirados talvez na descontração dos personagens em suas
raríssimas
férias turísticas. A família Tremblay, com suas discussões ásperas
entre
pai e filho e o carinho rústico entre os velhos cônjuges, forma um conjunto
de
personagens inesquecíveis que atravessam esses dois filmes.
Desconheço o restante da obra de
Pierre
Perrault e como ele levou adiante o pioneirismo dos canadenses no cinema
direto. Sei, porém, que se manteve fiel ao procedimento de propor uma
atividade
ou uma viagem a seus personagens para assim revelá-los em plena
ação.
Cerca de 20
filmes
dele
podem ser vistos na íntegra no site do Office National du
Film du Canada, mas com a desvantagem de
estarem quase todos sem legendas – e não adianta muito saber francês para
decifrar o québécois
predominante. Daí a importância dessa mostra subtitulada
em
português no Instituto Moreira Salles. Nos dias 24 a
26, no mesmo local, um colóquio sobre a obra de Perrault
reunirá
18 estudiosos do documentário, incluindo Michel Marie,
Phillipe
Dubois, Marc-Henri Piault, Silvio Da-Rin e Fernão
Ramos.
Confira aqui a programação e outras
informações sobre o evento.
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