“África
Hoje”
Para além de carvão e hidrelétricas.
C&N
Dos cinco
continentes, a África e a Oceania são os que menos
conhecemos através do cinema. Se a Oceania talvez não faça tanta falta, da
África seria muito bom se tivéssemos um fluxo regular de filmes para nos
conectar a uma de nossas matrizes étnicas. A mostra ‘África
Hoje’, que começa nesta terça-feira na Caixa
Cultural
Rio - e dia 29 na de São Paulo - tenta preencher um
pouco
desse déficit.
Com curadoria
de
Luciana Hees e do moçambicano Pedro Pimenta,
diretor do ‘Dockanema’, um dos mais importantes
festivais de documentários da África, a mostra traz 24
docs de longa e média metragem.
Eles
tratam da realidade de diversos países, tendo sido dirigidos tanto por
realizadores africanos quanto por estrangeiros. Pimenta resume assim
o
objetivo da mostra: ‘Pareceu-nos relevante transmitir ao irmão brasileiro
que
o irmão africano é diverso, complexo, rico também e que as
realidades das gentes africanas devem ser integradas na relação, que
tem
que passar do carvão e das hidroelétricas para uma dimensão mais abrangente
que
só o conhecimento da cultura do outro irá permitir’.
Alguns dos filmes
programados já tiveram passagem rápida pelo Brasil em mostras e festivais. É
o
caso do já clássico “Oxalá Cresçam Pitangas” (2007), de
Kiluange Liberdade e do escritor Ondjaki, em que dez
habitantes de Luanda, Angola, fornecem sua visão da cidade,
suas
aspirações e desilusões. Ou o delicioso “Dolce Vita
Africana”
(2008), de Cosima Spender, sobre um estúdio fotográfico que
registrava a
elite do Mali nos anos 1960 e 70. Ou ainda
“Neither
Allah, Nor Master” (2011), de Nadia El Fani, investigação
ateísta dos tabus muçulmanos na Tunísia em plena era das revoluções
árabes.
Da
África do Sul já tive a oportunidade
de
conferir dois filmes: “Behind the Rainbow” (2008), dirigido
pela
egípcia Jihan El-Tahri, e “Sea Point Days” (2008), de
François Vester. “Behind the Rainbow”, ao que consta,
vai
passar na versão de média metragem. Assisti ao longa, que faz um detalhado
balanço da transição do Congresso Nacional Africano de
movimento
de liberação (que tirou o país do apartheid) a partido hegemônico
no
poder desde 1994. A partir da relação de cumplicidade e posterior
rivalidade entre os dois últimos presidentes do país, Thabo Mbeki e
Jacob Zuma, o filme analisa a eventual transformação de antigos
heróis
românticos em políticos controvertidos, com acusações de corrupção e até de
estupro pesando sobre as costas. Um painel denso de sugestões
shakespeareanas,
baseado na riqueza do material de arquivo e no privilégio de ouvir
diretamente
os protagonistas.
“Sea Point
Days” é um retrato impressionista de um
bairro
chique de Cape Town, outrora restrito aos brancos e hoje laboratório
dos
ideais de integração racial na África do Sul. Com poucas falas e
muita
observação do cotidiano, senso de humor e de oportunidade, François
Vester deixa entrever a dialética entre aceitação e rejeição que ainda
prevalece entre brancos, negros e mulatos naquela linda cidade. Senhoras
saudosas da ‘lei e ordem’ dos ‘good old days’
passam
o tempo num lar de idosos em frente ao mar. As piscinas municipais são
ocupadas
pelo ‘arco-íris’ racial sul-africano. As ruas são
patrulhadas por uma polícia branca que tenta limpá-las dos
homelesses e
bêbados, em geral negros. Uma variedade de personagens, alguns bastante
interessantes, e um estilo quase musical fazem do filme não só informação
relevante, mas também entretenimento de qualidade.
Outro filme que
já
teve exibição entre nós é “Sisters in Law”
(2005). Como sempre faz em culturas que não domina, a inglesa Kim
Longinotto juntou-se a uma cineasta nativa, no caso a camaronesa
Florence
Ayisi, para realizar “Sisters in Law”. O filme é um
elogio
discreto da atuação da Women Lawyers
Association numa pequena cidade rural de Camarões. Num
cenário
clássico de famílias muçulmanas em que a mulher é pouco mais que um
utensílio
doméstico, uma advogada defende esposas agredidas ou forçadas ao sexo por
maridos brutais, meninas estupradas ou maltratadas por parentes, mulheres
vendidas pelos pais a homens que não amam. O método de Longinotto é
sempre eficaz: ganhar acesso às salas de depoimento e às cortes judiciais,
conquistar a confiança das mulheres e gravar os momentos decisivos dos
processos. Podemos nos perguntar até que ponto essa presença tão próxima e
frequente da câmera e da pequena equipe do filme influenciará na performance
e
nos vereditos de advogados e juízes. O fato é que “Sisters in
Law”, por mais realista que se pretenda,
ajuda a
produzir e repercutir casos exemplares de empoderamento da mulher em
contexto
social especialmente difícil.
O
média “Fronteiras de Amor e
Ódio” recolhe as memórias de trabalhadores
moçambicanos
expelidos da África do Sul por uma onda de xenofobia em 2008.
O
rico país vizinho é destino frequente para imigrantes de nações mais pobres
no
seu entorno. É longa a tradição de moçambicanos trabalhando nas minas e na
cidade de Joanesburgo. Os personagens desse filme de Camilo
Souza,
produzido pelo brasileiro Licínio Azevedo e sua Ébano
Multimídia, retornaram após terem suas casas incendiadas, parentes
mortos e famílias desmembradas. Seus relatos rebatem na consciência de um
jovem
que pensa em aventurar-se além-fronteira, num ciclo que as tragédias e
fracassos
parecem não interromper.
A
mostra África Hoje vai até o
dia 27, com sessões às 16h e 19h e ingressos a R$
2
e R$ 1. Nos dias 27 (Rio) e 29 (SP),
haverá
um debate reunindo a curadora Luciana Hees, o cineasta Marco
Abujamra e o professor Mahomed Bamba, natural da
Costa
do Marfim e radicado no Brasil.
Para ver
trailers dos filmes e conferir a
programação, visite o blog da
mostra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário