“Girimunho”
e “Luz nas
Trevas”
A terceira margem do rio e o Bandido, vivo!
C&N
A voz de uma mulher
idosa cantando alto, uma imagem
desfocada
e cheia de grãos. Assim começa “Girimunho”,
de forma a não enganar ninguém. Quem
quiser, fique na sala. Quem não gostar, desista logo. O filme que vamos ver
é
assim como se fosse contado por aquelas vozes rugosas e lentas (‘A calma é
muito
importante’), olhado por aquelas vistas cansadas, cantado daquele jeito
rústico
e doce.
Bastu e Maria do Boi, duas velhas amigas na mansidão de São Romão,
interior de Minas, são o princípio e o fim do belo filme de
Clarissa
Campolina e Helvécio Marins Jr.. A incrível capacidade delas,
assim
como dos poucos jovens que os cercam, de encarnar suas personagens sem
deixar de
ser elas mesmas, é o milagre em torno do qual “Girimunho”
se constrói. Entre o documentário e a ficção, o filme sai em busca de uma
terceira margem. A história que se conta é nutrida da história de quem
conta.
Não é
despropositado lembrar de Guimarães Rosa e sua Terceira Margem
do
Rio. É a morte que assoma à soleira das portas de São Romão
desde
a primeira cena, na cantiga do batuque de Maria do Boi. É a morte do
marido que, em vez de ficar quieta, continua atazanando Bastu na
calada
da noite (‘O tempo não para. Quem para somos nós’). Morte é partida. Ficar
ou
partir, eis o dilema de sempre, de todos. Branca e sua irmã
Preta
vivem isso com os próprios chinelos.
Mas, se abre uma fresta da porta para a morte, é para a vida que
“Girimunho”
escancara a passagem. Como no
igualmente
roseano “Terra Deu, Terra
Come”, o premiado doc de
Rodrigo Siqueira, temos aqui uma visão lúdica da morte. O que
move
Bastu, em seu pacto de não chorar, é a disposição para suprir a
ausência
do outro com o seu próprio desejo de viver (‘A vida é amável’). A
entrada
da máquina de costura na oficina do falecido é a metáfora redonda. E o
Rio
São Francisco, afinal, é outro que não para.
Com suas elipses poéticas e um tangenciamento muito sutil do sobrenatural, o
roteiro de Felipe Bragança rende talvez a melhor
assimilação do modelo fabular do tailandês Apichatpong
Weerasethakul, tão cultuado por jovens realizadores brasileiros. É
uma
escrita arejada, de alinhavo bem espaçado e aberta aos influxos dos lugares
e da
natureza no ato da filmagem. É uma maneira de filmar e editar (Marina
Meliande)
que sabe impor seus silêncios e seu ritmo, colhidos que são na observação de
um
mundo aparentemente estável.
Felizmente, Girimunho não é um mero elogio do estagnado e do ‘simples’. Pelo
contrário, é uma celebração do redemoinho da vida, da mudança e da
perspicácia
(“Quem não ouve conselho ouve coitado”). Um filme para ser bebido
devagarinho e
com gosto.
O Bandido está vivo!
“Luz nas
Trevas” é, se não a
primeira a merecer esse nome, uma das mais consistentes aventuras
intertextuais
já empreendidas pelo cinema brasileiro. Não é uma continuação do clássico
“O
Bandido
da Luz Vermelha”, até porque o
personagem do filme de 1968 morria no final imitando um pouco o
Michel Poiccard de “Acossado”, um pouco o “Pierrot le
Fou” de
Godard. Não é uma resposta, nem uma usurpação. Talvez não seja nem
mesmo
uma retomada do mesmo personagem, já que o bandido maduro que apodrece na
cadeia, vivido por Ney Matogrosso, contesta ‘o filme que fizeram
sobre
mim’.
Essa
falta de “explicação” só faz acentuar os prazeres de se assistir a
“Luz
nas
Trevas”. Desde, é claro, que o
espectador passe pelo primeiro tranco do roteiro, logo no início, quando a
narrativa em primeira pessoa passa de Luz para seu filho, e a história deste
assume o protagonismo. O que é retomado, na verdade, é algo do espírito
anárquico e ludicamente questionador do filme de Rogério
Sganzerla. Se “O
Bandido” era
já um filme intertextual, colagem tropicalista de signos policiais,
políticos e
culturais da época, o roteiro que o próprio Sganzerla deixou para
“Luz
nas
Trevas” permite incorporar o filme de 68 em sua malha de
referências.
Assim, frases,
trechos de áudio e de cenas em preto e branco do “Bandido”
invadem a fantasmagoria colorida de
“Luz”. Ora estão ali como um eco, ora como parte mesmo da
continuidade da história que agora se conta. Há tanto a reedição em cores de
alguns planos do “Bandido”
quanto a recuperação, em outro contexto, de cenas memoráveis, como a do
personagem comendo uma espiga de milho e olhando pelo binóculo. A edição em
livro do roteiro do “Bandido”
dá margem a uma sequência de
“Luz”, assim como Sérgio Mamberti, visto em
68
como uma bicha caricata, volta como político assemelhado ao vivido antes por
Pagano Sobrinho.
Os
tempos são outros, claro, e o filme
escancara isso de todas as maneiras. Sai o AI-5, entra o
AR-15.
Saem o rádio, as lojas de rua e as guarânias, entram as TVs de
plasma, os shoppings e o rap. O que antes era trepidação agora é
deslizamento em
superfícies lustrosas. Jorge, o filho de Luz, segue os passos
do
pai sem a mesma boçalidade que caracterizava o cafajeste dos anos 60. Agora
ele
só quer saber de ‘ouro ou euro’. Não passa de um neobabaca
cuja
maior virtude, além de namorar Djin Sganzerla, é nos deixar
ver
que a lanterna era de fato vermelha.
O
bandido, por sua vez, não avacalha
mais
nada. Virou um presidiário amargo, um brasileiro revoltado que inspira
certos
clichês do discurso anticorrupção. As reiteradas alusões aos
‘políticos’ e aos ‘ricos’, que nunca vão para a
cadeia, são um dos poucos traços óbvios num filme cheio de frescor e de um
legítimo compromisso com a diversão crítica. É surpreendente ver como o
personagem de Ney Matogrosso acaba incorporando marcas de
Helena Ignez (o misticismo que o leva a adotar o novo pseudônimo de
Luz
Divina) e se transformando aos poucos no próprio Ney Matogrosso. A
sobreposição de suas vozes de ontem e de hoje na apoteose musical fecha o
círculo da habilidosa operação empreendida pelo filme.
De
alguma forma, “Luz nas
Trevas” lembra
“A
Força do
Amor”
(“Breathless”), a versão pop de “Acossado”
que Jim McBride realizou em
1983
com Richard Gere e Valerie Kaprisky. Faz o mesmo deslocamento
de
contexto, de época e de referenciais. A diferença é que, no filme dirigido
por
Helena Ignez e Ícaro C. Martins, a metalinguagem é
expressão de um engajamento mais autêntico e orgânico, familiar mesmo, com o
original. Tudo bem que a indisciplina, visceral no filme de 68, aqui é mais
premeditada. Mas não acredito que a temeridade de voltar ao “Bandido”
pudesse ser mais bem-sucedida.
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