10 de maio de 2012

“Girimunho” e “Luz nas Trevas”


GirimunhoeLuz nas Trevas

A terceira margem do rio e o Bandido, vivo!

C&N
A voz de uma mulher idosa cantando alto, uma imagem desfocada e cheia de grãos. Assim começa “Girimunho”, de forma a não enganar ninguém. Quem quiser, fique na sala. Quem não gostar, desista logo. O filme que vamos ver é assim como se fosse contado por aquelas vozes rugosas e lentas (‘A calma é muito importante’), olhado por aquelas vistas cansadas, cantado daquele jeito rústico e doce.
Bastu e Maria do Boi, duas velhas amigas na mansidão de São Romão, interior de Minas, são o princípio e o fim do belo filme de Clarissa Campolina e Helvécio Marins Jr.. A incrível capacidade delas, assim como dos poucos jovens que os cercam, de encarnar suas personagens sem deixar de ser elas mesmas, é o milagre em torno do qual “Girimunho” se constrói. Entre o documentário e a ficção, o filme sai em busca de uma terceira margem. A história que se conta é nutrida da história de quem conta.
Não é despropositado lembrar de Guimarães Rosa e sua Terceira Margem do Rio. É a morte que assoma à soleira das portas de São Romão desde a primeira cena, na cantiga do batuque de Maria do Boi. É a morte do marido que, em vez de ficar quieta, continua atazanando Bastu na calada da noite (‘O tempo não para. Quem para somos nós’). Morte é partida. Ficar ou partir, eis o dilema de sempre, de todos. Branca e sua irmã Preta vivem isso com os próprios chinelos.
Mas, se abre uma fresta da porta para a morte, é para a vida que “Girimunho escancara a passagem. Como no igualmente roseano “Terra Deu, Terra Come”, o premiado doc de Rodrigo Siqueira, temos aqui uma visão lúdica da morte. O que move Bastu, em seu pacto de não chorar, é a disposição para suprir a ausência do outro com o seu próprio desejo de viver (‘A vida é amável’). A entrada da máquina de costura na oficina do falecido é a metáfora redonda. E o Rio São Francisco, afinal, é outro que não para.
Com suas elipses poéticas e um tangenciamento muito sutil do sobrenatural, o roteiro de Felipe Bragança rende talvez a melhor assimilação do modelo fabular do tailandês Apichatpong Weerasethakul, tão cultuado por jovens realizadores brasileiros. É uma escrita arejada, de alinhavo bem espaçado e aberta aos influxos dos lugares e da natureza no ato da filmagem. É uma maneira de filmar e editar (Marina Meliande) que sabe impor seus silêncios e seu ritmo, colhidos que são na observação de um mundo aparentemente estável.
Felizmente, Girimunho não é um mero elogio do estagnado e do ‘simples’. Pelo contrário, é uma celebração do redemoinho da vida, da mudança e da perspicácia (“Quem não ouve conselho ouve coitado”). Um filme para ser bebido devagarinho e com gosto.

O Bandido está vivo!

Luz nas Trevas é, se não a primeira a merecer esse nome, uma das mais consistentes aventuras intertextuais já empreendidas pelo cinema brasileiro. Não é uma continuação do clássico “O Bandido da Luz Vermelha”, até porque o personagem do filme de 1968 morria no final imitando um pouco o Michel Poiccard de “Acossado”, um pouco o “Pierrot le Fou de Godard. Não é uma resposta, nem uma usurpação. Talvez não seja nem mesmo uma retomada do mesmo personagem, já que o bandido maduro que apodrece na cadeia, vivido por Ney Matogrosso, contesta ‘o filme que fizeram sobre mim’.
Essa falta de “explicação” só faz acentuar os prazeres de se assistir a “Luz nas Trevas”. Desde, é claro, que o espectador passe pelo primeiro tranco do roteiro, logo no início, quando a narrativa em primeira pessoa passa de Luz para seu filho, e a história deste assume o protagonismo. O que é retomado, na verdade, é algo do espírito anárquico e ludicamente questionador do filme de Rogério Sganzerla. Se “O Bandido era já um filme intertextual, colagem tropicalista de signos policiais, políticos e culturais da época, o roteiro que o próprio Sganzerla deixou para “Luz nas Trevas permite incorporar o filme de 68 em sua malha de referências.
Assim, frases, trechos de áudio e de cenas em preto e branco do “Bandido invadem a fantasmagoria colorida de “Luz”. Ora estão ali como um eco, ora como parte mesmo da continuidade da história que agora se conta. Há tanto a reedição em cores de alguns planos do “Bandido” quanto a recuperação, em outro contexto, de cenas memoráveis, como a do personagem comendo uma espiga de milho e olhando pelo binóculo. A edição em livro do roteiro do “Bandido dá margem a uma sequência de “Luz”, assim como Sérgio Mamberti, visto em 68 como uma bicha caricata, volta como político assemelhado ao vivido antes por Pagano Sobrinho.
Os tempos são outros, claro, e o filme escancara isso de todas as maneiras. Sai o AI-5, entra o AR-15. Saem o rádio, as lojas de rua e as guarânias, entram as TVs de plasma, os shoppings e o rap. O que antes era trepidação agora é deslizamento em superfícies lustrosas. Jorge, o filho de Luz, segue os passos do pai sem a mesma boçalidade que caracterizava o cafajeste dos anos 60. Agora ele só quer saber de ‘ouro ou euro’. Não passa de um neobabaca cuja maior virtude, além de namorar Djin Sganzerla, é nos deixar ver que a lanterna era de fato vermelha.
O bandido, por sua vez, não avacalha mais nada. Virou um presidiário amargo, um brasileiro revoltado que inspira certos clichês do discurso anticorrupção. As reiteradas alusões aos ‘políticos’ e aos ‘ricos’, que nunca vão para a cadeia, são um dos poucos traços óbvios num filme cheio de frescor e de um legítimo compromisso com a diversão crítica. É surpreendente ver como o personagem de Ney Matogrosso acaba incorporando marcas de Helena Ignez (o misticismo que o leva a adotar o novo pseudônimo de Luz Divina) e se transformando aos poucos no próprio Ney Matogrosso. A sobreposição de suas vozes de ontem e de hoje na apoteose musical fecha o círculo da habilidosa operação empreendida pelo filme.
De alguma forma, Luz nas Trevas lembra “A Força do Amor (“Breathless”), a versão pop de “Acossado que Jim McBride realizou em 1983 com Richard Gere e Valerie Kaprisky. Faz o mesmo deslocamento de contexto, de época e de referenciais. A diferença é que, no filme dirigido por Helena Ignez e Ícaro C. Martins, a metalinguagem é expressão de um engajamento mais autêntico e orgânico, familiar mesmo, com o original. Tudo bem que a indisciplina, visceral no filme de 68, aqui é mais premeditada. Mas não acredito que a temeridade de voltar ao “Bandido” pudesse ser mais bem-sucedida.

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