‘A gente quer saúde e
arte’
Thereza Jessouroun não se vê
nem é
vista como uma realizadora de filmes sobre saúde.
C&N
Temas ligados à
saúde, às funções vitais e ao corpo humano são geralmente
considerados universos à parte dentro da produção audiovisual. Cabem na
prateleira dos filmes científicos ou institucionais sobre saúde pública.
Pouco
circulam fora de canais especializados e raramente chegam à ribalta dos
festivais. No entanto, uma realizadora carioca tem conquistado uma
visibilidade
especial para seus filmes relacionados com essa temática. Thereza
Jessouroun é a autora dos premiados curtas Clarita
e
Dois mundos, e do documentário de média metragem
Fim
do silêncio.
Isso ocorre talvez
porque Thereza não seja uma especialista no assunto. Seu talento despontou
com
um documentário sobre o cotidiano de travestis no Rio, Alma de
mulher (1998), um sobre a importância da dança do samba na
vida
dos moradores da Mangueira, Samba (2001), e
outro
sobre a vivência do congado por uma comunidade de descendentes de escravos
em
Minas, Os Arturos (2003). Curiosa sobre todas as
formas de abordagem documental, ela aprendeu muito com Eduardo
Coutinho, de quem foi assistente, e no trabalho para produções
estrangeiras rodadas no Brasil. Foi durante um curso com João
Moreira
Salles, ao estudar docs em primeira pessoa, que ela pensou
pela primeira vez em refletir, em filme, sobre a sua convivência com a mãe
portadora de Alzheimer.
Nascia Clarita, um curta que, além de ganhar diversos prêmios, entre
os
quais a Margarida de Prata da CNBB, virou peça
de
debate e esclarecimento na área médica. Thereza filmou sua mãe já em
estado de demência, enquanto comentava sua própria relação com esse
progressivo
afastamento do ente querido. Para mostrar os momentos mais graves da doença,
como as alucinações, guardados apenas em sua memória, ela chamou a atriz
Laura Cardoso, que deu uma performance memorável. Alternando esses
dois
regimes de representação de uma forma delicada e ao mesmo tempo corajosa,
Clarita comove tanto pela meditação de Thereza
acerca de sua família, como pela feliz solução estética para uma abordagem
arriscada. No rastro desse tratamento sensível, Thereza foi convidada
a
fazer um vídeo específico para orientação de cuidadores de pessoas com
Alzheimer, que está sendo distribuído pelo Selo
Fiocruz.
Clarita
está
no catálogo da Programadora
Brasil e no site Porta Curtas, onde tem provocado uma
avalanche de comentários emocionados. O filme tem sido amplamente utilizado
pela
Associação Brasileira de Alzheimer e Doenças
Similares e em estudos de gerontologia.
O
aspecto ligado à saúde não é uma
escolha
da diretora, mas consequência de seu interesse pela questão dramática de
quem
precisa continuar vivendo apesar de problemas ligados ao corpo e à mente.
Assim
foi com seu antigo desejo de fazer um filme para discutir a ilegalidade do
aborto e seus desdobramentos trágicos para mulheres de baixa renda.
Estimulada
pela posição do ex-Ministro José Gomes
Temporão a respeito do aborto clandestino como um dos grandes problemas
de
saúde pública do país, Thereza formatou seu projeto, que foi
selecionado
num edital da Fiocruz. Um chamado no Orkut
atraiu
dezenas de mulheres de Norte a Sul do país, dispostas a mostrar a cara e
relatar
sua opção pelo aborto clandestino há mais de oito anos, tempo de prescrição
do
chamado ‘crime’. A escolha final recaiu sobre personagens dos estados de
Rio, São Paulo e Pernambuco.
Nos primeiros cortes de Fim do silêncio, havia entrevistas
de
médicos e especialistas, além de materiais de TV sobre as
discussões políticas em torno da descriminalização do aborto. Mas
Thereza
acabou optando por eliminar tudo isso e valorizar a força dos depoimentos
das
mulheres. O resultado é impactante em sua simplicidade. Uma câmera atenta
diante
de rostos descobertos e consciências apaziguadas – apenas isso e algumas
pílulas
de informação escrita sobre saúde pública e impasses legislativos. Libelo
mais
franco e direto seria difícil de imaginar. Ao mesmo tempo, é um documentário
forte na tradição coutiniana, capaz de desvelar o feminino em plena
reivindicação de sua individualidade e dignidade.
Fim do silêncio foi objeto de
algumas polêmicas e alvo de ataques por grupos fundamentalistas católicos.
Thereza recebeu muitos e-mails hostis. Nada disso abalou a
Fiocruz, que já distribuiu mais de 1.000 cópias do filme, nem
seis
canais de TV que já o exibiram. Uma pequena seleção de cenas,
postada no Youtube, já teve quase 40.000 acessos até agosto e
recebeu quase 1.000 comentários refletindo o debate presente na sociedade a
respeito do assunto.
A
gênese de Dois mundos,
curta sobre o trânsito entre o mundo
sonoro e o mundo da surdez, se deu enquanto Thereza ministrava uma
oficina de documentários e se propôs a ajudar uma das alunas a realizar um
filme
sobre sua tia, portadora de deficiência auditiva. Quando o projeto venceu um
edital da Riofilme, a ex-aluna, Rosana Fergossi, estava
mais voltada para sua carreira de atriz. Thereza abraçou a ideia e
resolveu concretizá-la a sua maneira. Elencou pessoas recém-submetidas a
implante coclear ou usuárias de aparelhos auditivos e concentrou o foco na
questão da passagem entre os dois mundos.
Os
depoimentos coletados são sugestivos
e
surpreendentes para quem conhece apenas os estereótipos da surdez. Mas
Thereza não queria somente ouvir. Queria tematizar no filme essa
relação
ambígua entre escutar e não escutar. Chamou um diretor de fotografia
familiarizado com a linguagem dos clipes musicais. A montagem e a edição
sonora,
por sua vez, se encarregam de transportar o espectador para os fenômenos
narrados pelos personagens, entre eles um surfista e um transformista. Os
impulsos sonoros e visuais comentam as falas e conduzem nosso olhar de um
personagem a outro. O resultado é um ensaio poético sobre a sinestesia das
impressões visuais, sonoras e das vibrações que produzem a percepção das
coisas.
Algo essencialmente cinematográfico, sem que haja a mínima perda de foco ou
coesão narrativa.
Dois mundos foi premiado no
Festival de Brasília e em mais oito eventos do gênero, além de
ter
sido finalista no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro.
Legendado em
libras (linguagem de sinais), virou um hit também entre portadores de
deficiência auditiva. Eles costumam apreciar o fato de se verem
representados em
chave sincera e afirmativa.
Thereza Jessouroun
não se vê nem é vista como uma realizadora de filmes sobre saúde, mas sua
contribuição nesse setor tem sido inspiradora para quem não quer abrir mão
da
arte ao tratar desses temas. Sua carreira segue em frente agora com um novo
documentário rodado na Estação Primeira de Mangueira.
Coração do Samba não tem nada a ver com cardiologia,
mas
com a pulsação da bateria, que mantém o samba vivo e os corpos em movimento.
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