14 de junho de 2012

‘A gente quer saúde e arte’


A gente quer saúde e arte
Thereza Jessouroun não se vê nem é vista como uma realizadora de filmes sobre saúde.
C&N
Temas ligados à saúde, às funções vitais e ao corpo humano são geralmente considerados universos à parte dentro da produção audiovisual. Cabem na prateleira dos filmes científicos ou institucionais sobre saúde pública. Pouco circulam fora de canais especializados e raramente chegam à ribalta dos festivais. No entanto, uma realizadora carioca tem conquistado uma visibilidade especial para seus filmes relacionados com essa temática. Thereza Jessouroun é a autora dos premiados curtas Clarita e Dois mundos, e do documentário de média metragem Fim do silêncio.
Isso ocorre talvez porque Thereza não seja uma especialista no assunto. Seu talento despontou com um documentário sobre o cotidiano de travestis no Rio, Alma de mulher (1998), um sobre a importância da dança do samba na vida dos moradores da Mangueira, Samba (2001), e outro sobre a vivência do congado por uma comunidade de descendentes de escravos em Minas, Os Arturos (2003). Curiosa sobre todas as formas de abordagem documental, ela aprendeu muito com Eduardo Coutinho, de quem foi assistente, e no trabalho para produções estrangeiras rodadas no Brasil. Foi durante um curso com João Moreira Salles, ao estudar docs em primeira pessoa, que ela pensou pela primeira vez em refletir, em filme, sobre a sua convivência com a mãe portadora de Alzheimer.
Nascia Clarita, um curta que, além de ganhar diversos prêmios, entre os quais a Margarida de Prata da CNBB, virou peça de debate e esclarecimento na área médica. Thereza filmou sua mãe já em estado de demência, enquanto comentava sua própria relação com esse progressivo afastamento do ente querido. Para mostrar os momentos mais graves da doença, como as alucinações, guardados apenas em sua memória, ela chamou a atriz Laura Cardoso, que deu uma performance memorável. Alternando esses dois regimes de representação de uma forma delicada e ao mesmo tempo corajosa, Clarita comove tanto pela meditação de Thereza acerca de sua família, como pela feliz solução estética para uma abordagem arriscada. No rastro desse tratamento sensível, Thereza foi convidada a fazer um vídeo específico para orientação de cuidadores de pessoas com Alzheimer, que está sendo distribuído pelo Selo Fiocruz.
Clarita está no catálogo da Programadora Brasil e no site Porta Curtas, onde tem provocado uma avalanche de comentários emocionados. O filme tem sido amplamente utilizado pela Associação Brasileira de Alzheimer e Doenças Similares e em estudos de gerontologia.
O aspecto ligado à saúde não é uma escolha da diretora, mas consequência de seu interesse pela questão dramática de quem precisa continuar vivendo apesar de problemas ligados ao corpo e à mente. Assim foi com seu antigo desejo de fazer um filme para discutir a ilegalidade do aborto e seus desdobramentos trágicos para mulheres de baixa renda. Estimulada pela posição do ex-Ministro José Gomes Temporão a respeito do aborto clandestino como um dos grandes problemas de saúde pública do país, Thereza formatou seu projeto, que foi selecionado num edital da Fiocruz. Um chamado no Orkut atraiu dezenas de mulheres de Norte a Sul do país, dispostas a mostrar a cara e relatar sua opção pelo aborto clandestino há mais de oito anos, tempo de prescrição do chamado ‘crime’. A escolha final recaiu sobre personagens dos estados de Rio, São Paulo e Pernambuco.
Nos primeiros cortes de Fim do silêncio, havia entrevistas de médicos e especialistas, além de materiais de TV sobre as discussões políticas em torno da descriminalização do aborto. Mas Thereza acabou optando por eliminar tudo isso e valorizar a força dos depoimentos das mulheres. O resultado é impactante em sua simplicidade. Uma câmera atenta diante de rostos descobertos e consciências apaziguadas – apenas isso e algumas pílulas de informação escrita sobre saúde pública e impasses legislativos. Libelo mais franco e direto seria difícil de imaginar. Ao mesmo tempo, é um documentário forte na tradição coutiniana, capaz de desvelar o feminino em plena reivindicação de sua individualidade e dignidade.
Fim do silêncio foi objeto de algumas polêmicas e alvo de ataques por grupos fundamentalistas católicos. Thereza recebeu muitos e-mails hostis. Nada disso abalou a Fiocruz, que já distribuiu mais de 1.000 cópias do filme, nem seis canais de TV que já o exibiram. Uma pequena seleção de cenas, postada no Youtube, já teve quase 40.000 acessos até agosto e recebeu quase 1.000 comentários refletindo o debate presente na sociedade a respeito do assunto.
A gênese de Dois mundos, curta sobre o trânsito entre o mundo sonoro e o mundo da surdez, se deu enquanto Thereza ministrava uma oficina de documentários e se propôs a ajudar uma das alunas a realizar um filme sobre sua tia, portadora de deficiência auditiva. Quando o projeto venceu um edital da Riofilme, a ex-aluna, Rosana Fergossi, estava mais voltada para sua carreira de atriz. Thereza abraçou a ideia e resolveu concretizá-la a sua maneira. Elencou pessoas recém-submetidas a implante coclear ou usuárias de aparelhos auditivos e concentrou o foco na questão da passagem entre os dois mundos.
Os depoimentos coletados são sugestivos e surpreendentes para quem conhece apenas os estereótipos da surdez. Mas Thereza não queria somente ouvir. Queria tematizar no filme essa relação ambígua entre escutar e não escutar. Chamou um diretor de fotografia familiarizado com a linguagem dos clipes musicais. A montagem e a edição sonora, por sua vez, se encarregam de transportar o espectador para os fenômenos narrados pelos personagens, entre eles um surfista e um transformista. Os impulsos sonoros e visuais comentam as falas e conduzem nosso olhar de um personagem a outro. O resultado é um ensaio poético sobre a sinestesia das impressões visuais, sonoras e das vibrações que produzem a percepção das coisas. Algo essencialmente cinematográfico, sem que haja a mínima perda de foco ou coesão narrativa.
Dois mundos foi premiado no Festival de Brasília e em mais oito eventos do gênero, além de ter sido finalista no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. Legendado em libras (linguagem de sinais), virou um hit também entre portadores de deficiência auditiva. Eles costumam apreciar o fato de se verem representados em chave sincera e afirmativa.
Thereza Jessouroun não se vê nem é vista como uma realizadora de filmes sobre saúde, mas sua contribuição nesse setor tem sido inspiradora para quem não quer abrir mão da arte ao tratar desses temas. Sua carreira segue em frente agora com um novo documentário rodado na Estação Primeira de Mangueira. Coração do Samba não tem nada a ver com cardiologia, mas com a pulsação da bateria, que mantém o samba vivo e os corpos em movimento.

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