‘A salvação segundo
Beto
Brant’
Melodrama de índole religiosa.
C&N
Será
“Eu Receberia as Piores Notícias de
seus
Lindos Lábios”
um
filme religioso? Será um melodrama mexicano transplantado para a
Amazônia
do século 21? Seria ambas as coisas, mas filtradas pela secura
da
pena de Marçal Aquino e das lentes de Beto Brant e Renato
Ciasca?
A
partir daqui, este texto contém spoilers.
Se você ainda não viu o filme, deixe para ler
depois.
Lavínia, a personagem defendida
com
unhas e pélvis por Camila Pitanga, é uma pecadora com mais capacidade
de
regeneração que cauda de lagartixa. Dona de um passado traumático, ela é
salva
duas vezes durante o filme: primeiro, da sarjeta pela palavra do pastor
sedutor
e engajado; depois, da loucura pelo olhar apaixonado do fotógrafo
individualista. O tema da redenção se estende de Lavínia (o
corpo)
aos eventos da comunidade onde se passa o filme (o espírito): o circo pagão
de
Xico Chagas se opõe ao circo místico-político do pastor
Ernani.
Outros signos
pararreligiosos, ou que relacionam o
religioso
com o profano, se espalham pelo filme. Cauby, o fotógrafo,
cultua
imagens de Lavínia expostas nas paredes de sua casa. A grande
cena
de exorcismo se assemelha, em seu paroxismo, às muitas de sexo, praticado
sempre
com muita sofreguidão e umidade corporal. A própria história é contada com
uma
estrutura de cruz: Lavínia é o eixo vertical, que atravessa
toda a
história, enquanto Ernani e Cauby cruzam sua
vida
com uma breve interseção, justamente (e literalmente) sobre ela. Se
Lavínia é uma espécie de Madalena, a prostituta
bíblica, quem é atingido pela primeira pedra é
Cauby.
Talvez a
gente possa encontrar ecos de
religião em outros filmes de Beto Brant, um diretor comumente
associado a
um mundo de violência e corporalidade. Por exemplo, a expiação da culpa é
central em “Ação Entre
Amigos” (1998) e “O Invasor” (2002). A salvação pelo anjo
amoroso é uma possível chave de leitura para “Cão sem Dono”
(2007).
E tem ainda o tratamento
cômico
do personagem Jó no seu primeiro curta, codirigido por
Ralph
Strelow.
Eu
Receberia… é um melodrama de índole
religiosa, embora os traços definidores desse gênero estejam camuflados por
uma
encenação que aponta sempre para o visceral e o sensual. Neste que considero
o
melhor resultado de sua parceria de direção com Ciasca, Brant
recombina elementos de sua primeira fase, quando já trabalhava com roteiros
de
Aquino e produção de Ciasca - e de suas criações mais recentes. O
argumento policial e a ação distanciada de centros urbanos, do início da
carreira, vêm mesclados com o huis
clos amoroso e uma relação íntima entre sexo e
criação/fruição artística, predominantes em “Crime Delicado” (2005),
“Cão sem Dono” e “O Amor Segundo B. Schianberg” (2010).
Dessa mélange vem uma força muito
peculiar
aos filmes do grupo. Uma força que, no novo filme, está melhor concentrada
no
triângulo central, enquanto se dispersa e afrouxa nas subtramas paralelas: o
editor de jornal, que reedita o insuportável clichê da bicha erudita; o
exotismo
do velho palhaço e da cantora esotérica; e o discurso sobre a devastação da
floresta amazônica. O espaço aberto, de maneira pouco suave, a esses
ingredientes terciários rouba bastante da densidade do filme.
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